domingo, 18 de janeiro de 2015

Em estado crítico: "Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer" de Carlos Vaz Marques


O que faz de alguém um bom entrevistador? Equilíbrio, equilíbrio, equilíbrio. O bom entrevistador conjuga de forma equilibrada elementos que parecem antagónicos mas que, quando usados com perícia, conseguem criar momentos inesquecíveis. O bom entrevistador está bem preparado, conhece bem o entrevistado e o tema, sabe que perguntas quer fazer. Mas um entrevistador controlador e rígido nunca vai além do interrogatório, não se criando o ambiente de descontracção e empatia necessários para que o entrevistado se sinta seduzido a partilhar. E por isso o entrevistador tem de ser também um bom ouvinte, estar disposto a embarcar na viagem com o entrevistado, a seguir por um caminho que surja na conversa, mesmo que o seu plano inicial não fosse esse. Mas sem tirar os olhos do ponto ao qual quer chegar, caso contrário a entrevista torna-se apenas numa conversa flutuante e pouco frutuosa.

Sendo empático e conciliador, é fundamental que o entrevistador seja também ousado, que não se deixe inibir pela pessoa que tem pela frente e perceba qual é a pergunta a que aquela pessoa não quer responder. Porque por vezes é necessário desafiar o entrevistado para que ele saia de trás da sua muralha e revele algo de genuíno. Mas para além de tudo isto, o que um bom entrevistador precisa é de um bom entrevistado, porque se há coisa dolorosa é ver alguém a fazer perguntas interessantes que a outra pessoa não tem capacidade de responder.

Felizmente em “Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer”, editado pela Tinta-da-China e que compila doze entrevistas publicadas na revista “Ler”, temos o melhor de dois mundos: um excelente entrevistador, Carlos Vaz Marques, com excelentes entrevistados. Dificilmente se conseguiria criar um grupo de escritores portugueses mais significativo do que Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes (já falei o suficiente sobre a sua entrevista, portanto não vou voltar a fazê-lo, mas é uma entrevista interessante, apesar do entrevistado…), José Saramago, Eduardo Lourenço, António Tabucchi, Mia Couto, Valter Hugo Mãe, Mário de Carvalho, Gonçalo M. Tavares, Dulce Maria Cardoso, Manuel António Pina e Hélia Correia. Mas deste grupo há algumas entrevistas que se destacam.

Agustina é uma pessoa muito particular. Manuel António Pina na sua entrevista, uma das melhores deste conjunto em que é levantado um pouco o véu sobre os bastidores do mundo literário, inclui Agustina no grupo das estátuas da literatura portuguesa e o que ele quer dizer fica bastante claro quando ouvimos o que a escritora tem para dizer. Há em Agustina um carácter absoluto, com afirmações fortes que têm quase uma aura de lei. E é com um tom cândido e sereno que diz que J. K. Rowling não é a verdadeira autora de “Harry Potter”, tendo por trás um escritor-fantasma. E diz também que Stephen King tem um negro (escritor não identificado que escreve partes dos seus livros) e que ela consegue facilmente identificar as partes escritas por um e pelo outro.

No pólo oposto a Agustina temos um Eduardo Lourenço humilde que, após uma intensa insistência de Carlos Vaz Marques, acaba por confessar que nunca pensou escrever ficção ou poesia por se sentir inibido perante o talento dos escritores que admira. Lourenço prefere por isso falar de Pessoa, de Sá-Carneiro ou de Llansol, da grande poesia que considera que “nos oferece um mundo no qual a vivência deste se altera em cores e dimensões não sonhadas”.

A entrevista de Saramago surge no livro logo após a de Lobo Antunes. Uma escolha inocente? Não sei, mas a verdade é que é extremamente útil porque nos dá uma visão muito concreta das diferenças de postura dos dois escritores. Em Saramago nota-se a simplicidade de quem não se perde no auto-elogio, nem em ataques gratuitos a outros escritores. Diz-nos Saramago: “um livro é uma barca deitada ao mar, sem tripulação nem destino. Lança-se ao mar e depois logo se vê o que acontece. No meu caso, posso-lhe dizer que tive sorte. Sou uma pessoa que admite a importância do factor a que chamamos sorte, Ter aparecido no momento exacto. Talvez até com a obra exacta.”

Há duas entrevistas de que gosto particularmente. Uma delas é de Mia Couto, que fala sobre a importância de esquecer para escrever, uma vontade de olhar em frente e descobrir novos caminhos que é muito interessante. Mas mais do que isso, Mia Couto apresenta-nos a perspectiva de um branco com pais portugueses no processo de independência de Moçambique, a desconfiança com que era tratado mesmo assumindo-se como apoiante do movimento. E há também a descrição da sua visita à casa em que viveu em criança, o encontro com um homem com parecenças incríveis com a personagem principal de Jesusalém e a surpresa de muitos ao perceberem que ele não é uma mulher negra.

E depois há Valter Hugo Mãe e uma das entrevistas mais sui generis que alguma vez leremos de autores portugueses. Há um despudor que às vezes é quase incómodo. A forma como Valter Hugo Mãe cresceu com a consciência da morte do seu irmão, a ideia de que morreria a primeira vez que alguém lhe dissesse que o amava, a necessidade catártica que teve de se fotografar nu para lidar com o desnudamento emocional na sua poesia, o descaramento com que diz desejar fazer amor com os ossos de Camões por se sentir tão excitado com o seu talento. Eu, que até então tinha bastantes reservas em ler os seus livros, fiquei com muita vontade de fazê-lo.

Carlos Vaz Marques proporciona-nos nestas doze entrevistas uma viagem pelas paisagens íntimas de figuras incontornáveis da literatura portuguesa, dando ao nome nas capas dos livros uma voz, uma fisionomia psicológica que nos revela pistas sobre aquilo que lemos. Um livro para ler, reler e reflectir.

Classificação: 19/20 

6 comentários:

  1. Olá!

    Gostei muito da opinião! Não conhecia o livro. Mas fiquei muito curiosa para o ler.

    Boas leituras!

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    1. Olá Isaura! É um excelente livro e dá-nos uma visão mais completa dos autores. Recomendo!

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  2. estou sempre atrasada. descobi o seu bogue há uns dias e ando a lê-lo. os artigos sobre o Lobo Antunes tocaram a mouche. eu acho o homem interessante, um verdadeiro caso psiquiátrico. mas sõ por alguns minutos. fosse eu psiquiatra tratava de o impingir a um colega. quanto aos livros dele - uma chatice desde o primeiro: li já não sei quantas páginas e ía morrendo de ennui. além de que já lera a coisa algures e muito mais bem escrita. como é que se passa de plagiador a grande escritor? como entretanto vivi muitos anos fora do país, perdi a passagem. tanto melhor para mim. assunto encerrado.
    gosto das entrevistas do Carlos Vaz Marques, li algumas e decerto vou comprar o livro para ler outras.
    o seu blogue interessa-me, vai-me dando notícias do que se passa literariamente em Portugal. agradeço,

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    1. Muito obrigado Graça! Espero que continue a ler e a gostar. Este livro é uma boa leitura garantida. Aliás, a Tinta-da-China tem um conjunto de livros de entrevistas a escritores muito interessante. Estão destinado a acabar na minha estante!

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  3. Ando a recuperar as entrevistas de "Pessoal... e transmissível" através de podcast. O Carlos Vaz Marques tem uma capacidade tremenda de transformar as entrevistas (mesmo as mais exigentes a nível de formalidade) em conversas deliciosas. Acho que em muito contribui a preparação exímia a que se submete para cada uma delas...

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