quinta-feira, 26 de junho de 2014

Em estado crítico: “Molloy” de Samuel Beckett


O nome de Samuel Beckett está inscrito a tinta permanente no grande livro da história da literatura. Qualquer pessoa que se interesse por ler escuta o seu nome, pronunciado em tons de idolatria, com devoção. Beckett é Beckett e ler Beckett deve ser uma experiência transformadora. Ou uma grande desilusão.

“Molloy”, editado em Portugal pela Relógio D'Água, é o primeiro livro de uma trilogia de que também fazem parte “Malone Está a Morrer” e “O Inominável”, considerado por muitos como uma das obras mais importantes de Beckett, se não a mais importante. E há certamente méritos nele que ninguém poderá negar. Se me pedissem para defender o livro, eu diria que o que “Molloy” tem de melhor é o que revela da capacidade de Beckett para criar personalidades, de se introduzir numa mente, num modo de pensar, e construir uma lógica de acção adequada, o que tem uma dificuldade ainda mais acrescida quando a narração é feita na primeira pessoa. Mais do que um romance, estamos perante um monólogo, que enquanto peça de teatro poderia funcionar bem.

Beckett divide o livro em duas partes: na primeira acompanhamos Molloy no seu percurso em busca da sua mãe e na segunda seguimos Moran na sua demanda para encontrar Molloy. As questões existencialistas são uma constante nas duas partes, seguindo as dicotomias clássicas mãe/filho e pai/filho. Molloy mais do que procurar a mãe, procura um conceito de casa, um espaço genesíaco que lhe permita encontrar-se, que torne mais claro um mundo que se tornou confuso, possivelmente devido a alguma perturbação psicológica evidenciada por um discurso errante, por vezes desconexo. E se em Molloy há procura, em Moran há recusa, sentimentos gratuitos de repúdio pelo filho, quase como se temesse que o quisesse destituir da sua posição, da sua identidade.

Aparentemente Molloy e Moran representam dois extremos, respectivamente o da perturbação e o da normalidade. As diferenças da enunciação de Moran face a Molloy são claras inicialmente, há um sentido de ordem, de ponderação, expressa até mesmo pela forma, com o discurso de Moran organizado em diferentes parágrafos e o de Molloy em apenas dois (o segundo parágrafo começa na página 8 e termina na 110!). Mas essas fronteiras vão-se esbatendo e no final pouco separa Moran de Molloy. Na realidade, apesar de sua aparente maior racionalidade, os actos de Moran superam em gravidade os de Molloy, o que nos leva a ponderar sobre o que define a normalidade mental de uma pessoa. Não estaremos todos nós a algumas páginas de nos tornarmos loucos?

As questões levantadas por “Molloy” são de facto muito interessantes e Beckett é muito eficaz na forma como as traz até nós. Mas os méritos do livro ficam-se por aí, na minha opinião. “Molloy” é um livro difícil. Acompanhar as deambulações mentais de Molloy torna-se num verdadeiro suplício. Tentar acompanhar a sua linha de raciocínio é um desafio por vezes absolutamente perdido à partida, porque não é suposto uma pessoa perturbada ter uma linha de raciocínio coerente, mas também não é suposto um leitor deliciar-se com várias páginas sobre a organização nos bolsos de pedras para chupar. Beckett cometeu na minha opinião o pecado de confundir o livro com as personagens, e a desorientação das personagens torna-se numa leitura frustrante.

Ironicamente, o que confere a “Molloy” os seus méritos literários é o que o afasta do leitor. Correndo o risco de deixar alguns fãs de Beckett enfurecidos, “Molloy” parece-me mais um exercício intelectual, muito focado na forma, do que uma obra literária. Reconheço-lhe o valor mas não gostei da experiência, nem recomendo a leitura. Continuarei em breve com a leitura dos restantes livros da trilogia. Desejem-me sorte!


Classificação: 10/20

1 comentário:

  1. Eu já assumira que não era um romance fácil, ao contrário da escrita, mas gostei de Molloy, apesar de não ter ficado na lista dos meus predilectos.

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