O nome de Samuel Beckett está inscrito a tinta permanente no
grande livro da história da literatura. Qualquer pessoa que se interesse por ler
escuta o seu nome, pronunciado em tons de idolatria, com devoção. Beckett é
Beckett e ler Beckett deve ser uma experiência transformadora. Ou uma grande
desilusão.
“Molloy”, editado em Portugal pela Relógio D'Água, é o primeiro livro de uma trilogia de que também
fazem parte “Malone Está a Morrer” e “O Inominável”, considerado por muitos como uma das obras mais importantes de Beckett, se não a mais importante. E há
certamente méritos nele que ninguém poderá negar. Se me pedissem para defender o
livro, eu diria que o que “Molloy” tem de melhor é o que revela da capacidade
de Beckett para criar personalidades, de se introduzir numa mente, num modo de
pensar, e construir uma lógica de acção adequada, o que tem uma dificuldade ainda
mais acrescida quando a narração é feita na primeira pessoa. Mais do
que um romance, estamos perante um monólogo, que enquanto peça de teatro
poderia funcionar bem.
Beckett divide o livro em duas partes: na primeira acompanhamos
Molloy no seu percurso em busca da sua mãe e na segunda seguimos Moran na sua
demanda para encontrar Molloy. As questões existencialistas são uma constante
nas duas partes, seguindo as dicotomias clássicas mãe/filho e pai/filho. Molloy
mais do que procurar a mãe, procura um conceito de casa, um espaço genesíaco
que lhe permita encontrar-se, que torne mais claro um mundo que se tornou
confuso, possivelmente devido a alguma perturbação psicológica evidenciada por
um discurso errante, por vezes desconexo. E se em Molloy há procura, em Moran há
recusa, sentimentos gratuitos de repúdio pelo filho, quase
como se temesse que o quisesse destituir da sua posição, da sua
identidade.
Aparentemente Molloy e Moran representam dois extremos,
respectivamente o da perturbação e o da normalidade. As diferenças da
enunciação de Moran face a Molloy são claras inicialmente, há um sentido de
ordem, de ponderação, expressa até mesmo pela forma, com o discurso de Moran
organizado em diferentes parágrafos e o de Molloy em apenas dois (o segundo
parágrafo começa na página 8 e termina na 110!). Mas essas fronteiras vão-se
esbatendo e no final pouco separa Moran de Molloy. Na realidade, apesar de sua
aparente maior racionalidade, os actos de Moran superam em gravidade os de
Molloy, o que nos leva a ponderar sobre o que define a normalidade mental de
uma pessoa. Não estaremos todos nós a algumas páginas de nos
tornarmos loucos?
As questões levantadas por “Molloy” são de facto muito
interessantes e Beckett é muito eficaz na forma como as traz até nós. Mas os
méritos do livro ficam-se por aí, na minha opinião. “Molloy” é um livro
difícil. Acompanhar as deambulações mentais de Molloy torna-se num verdadeiro
suplício. Tentar acompanhar a sua linha de raciocínio é um desafio por vezes
absolutamente perdido à partida, porque não é suposto uma pessoa perturbada ter
uma linha de raciocínio coerente, mas também não é suposto um leitor
deliciar-se com várias páginas sobre a organização nos bolsos de pedras para chupar. Beckett cometeu na minha opinião o pecado de confundir o livro com as
personagens, e a desorientação das personagens torna-se numa leitura frustrante.
Ironicamente, o que confere a “Molloy” os seus méritos
literários é o que o afasta do leitor. Correndo o risco de deixar alguns fãs de
Beckett enfurecidos, “Molloy” parece-me mais um exercício intelectual, muito
focado na forma, do que uma obra literária. Reconheço-lhe o valor mas não
gostei da experiência, nem recomendo a leitura. Continuarei em breve com a leitura dos restantes livros da trilogia. Desejem-me sorte!
Classificação: 10/20
Eu já assumira que não era um romance fácil, ao contrário da escrita, mas gostei de Molloy, apesar de não ter ficado na lista dos meus predilectos.
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