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sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O que é que a Granta tem? “A Revolução Instantânea” de James Fenton


Gostando eu de política e de reportagens, seria de esperar que uma reportagem sobre um acontecimento marcante da política internacional fosse algo que me suscitasse imenso interesse. Mas não é esse o caso, e já o relato de Kapuścińsk na 1ª Granta havia sido um desafio à minha vontade. Muitas vezes sinto neste tipo de textos que o jornalista sente que está a falar com especialistas e parte portanto do princípio que acontecimentos e personagens nos são familiares, dispensando contextualização. E depois, o pobre o leitor quando dá por si está no meio de um realidade que lhe é completamente alheia, sentindo-se o mais ignorante dos seres.

Mas apesar das minhas reticências iniciais, Fenton tem a seu favor poder contar com o fascínio que o casal Marcos (o ditador Filipino e a sua espampanante mulher Imelda) exercem,  o que sempre torna a leitura mais cativante. Focando-se na queda do regime de Ferdinand Marcos, o relato de Fenton evidencia o efeito que uma sequência vertiginosa de acontecimentos pode ter sobre a realidade, como se presente, passado e futuro se confundissem por instantes e o mundo tal como o concebemos ruísse perante os nossos olhos, pertencendo tudo ao passado embora ainda exista no presente.

E é assim que num momento o casal Marcos está a receber jornalistas na sua luxuosa residência, e no momento seguinte estranhos caminham pelos seus aposentos como se lhe pertencessem. Aquela já não era a casa de Imelda e Ferdinand, mas era como se os seus passos ainda se ouvissem ao fundo do corredor.

Fenton deixa-nos no final algumas provocações. Perante a rapidez com que tudo ocorreu, a revolução terá sido orquestrada? Mas mais do que isso: a revolução foi feita em nome o quê? Será que o que se segue é melhor do que aquilo de que se viram livres? As revoluções têm muitas vezes esse defeito, o de serem um fim em si mesmo, e de repente acorda-se no dia seguinte e pergunta-se “e agora?”.

domingo, 26 de julho de 2015

O que é que a Granta tem? “É Perigoso Ser Feliz Duas Vezes” de Raquel Ribeiro


Uma das coisas boas da Granta é permitir-nos conhecer novos autores portugueses cujos livros, de outra forma, não nos sentiríamos compelidos a ler. Raquel Ribeiro é um bom exemplo disso, e certamente poucos resistirão à vontade de ler “Este Samba no Escuro” após conhecerem o seu conto no 2º número da Granta portuguesa.

Raquel Ribeiro apresenta-nos um relato da sua segunda ida a Cuba, quando trabalhava na sua tese. Sob uma capa de normalidade, revela-se de forma inesperada o lado negro de um regime não democrático quando Raquel é submetida a um interrogatório pelas autoridades por ter feito questões sobre um tema sensível. O seu testemunho torna evidente o papel dos níveis médios e baixos do poder, que são os elementos que perpetuam os princípios do regime, cujo controlo se pode reflectir em coisas tão simples como impedir que um investigador consulte um livro, não permitir que uma janela seja aberta ou bloquear a entrada num edifício mesmo quando há um convite de um superior.

Depois de uma primeira visita feliz, Raquel Ribeiro vê o mito desvanecer-se e uma nova visão da realidade erguer-se. Num momento surreal, após o interrogatório, um dos agentes mostra-se preocupado com o testemunho futuro dela quanto ao que ali se passou e tenta assegurar-se que Raquel nunca se sentiu ameaçada. E o mais pernicioso é que Raquel, que estava aterrada, escondeu o que sentia apenas para poder sair dali rapidamente. E esse é o efeito mais perigoso do medo: o silêncio.

Às vezes é de facto um perigo regressarmos aos lugares onde fomos felizes, mas mesmo assim não perderei a oportunidade de me reencontrar com a escrita de Raquel Ribeiro.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

O que é que a Granta tem? “Servindo o Chá” de Hélia Correia


Uns dias antes de ser anunciado o vencedor deste ano do Prémio Camões, e estando eu bem longe de imaginar o que iria acontecer, parti para a leitura do segundo conto criado por Hélia Correia para a Granta portuguesa. Não parti esfuziante, há que dizê-lo, porque o seu conto na primeira Granta foi um dos que menos gostei e também porque a entrevista de Hélia Correia a Carlos Vaz Marques apresentada no livro “Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer” foi a que menos me interessou. Tinha colocado Hélia Correia na categoria “senhora dos gatos esotérica obcecada pela Grécia” e tinha seguido em frente, pouco motivado para a reencontrar.

E é nestes momentos que agradeço a minha persistência e o por vezes obrigar-me a ler coisas, porque as primeiras opiniões são muitas vezes más conselheiras e nunca se sabe o que nos pode escapar quando lhes damos ouvidos. Assim, num segundo encontro com um conto de Hélia Correia saí confiante quanto ao nosso futuro juntos.

Hélia Correia continua a história de Laura, que após as suas cirurgias plásticas se vê atormentada por um sonho com Jane Fonda, que lhe revela que o segredo está em algo mais profundo do que a admiração física, um amor, a capacidade de suscitar uma devoção no outro enquanto instrumento de poder. A frustração de Laura é palpável. “Tanto esforço para nada”, quase parece dizer, sabendo que no seu processo de melhoramento físico perdeu a ligação emocional que tinha com o seu marido. Torna-se então claro que é necessária uma ruptura.

Com a mesma voracidade com que se entregou a um cirurgião plástico, Laura tenta uma nova vida e surpreendentemente encontra a devoção que procurava. No final há sempre uma lição: não importa o que se é ou o que se tem, mas sim a percepção que os outros têm. Pelo menos para já. Veremos o que o futuro trará para Laura nas próximas Grantas...

segunda-feira, 18 de maio de 2015

O que é que a Granta tem? “Várias Versões de Uma Catástrofe” de José Gardeazabal


Num inspirado tom confessional, uma jovem rapariga revela-nos o impacto que dois acontecimentos quase simultâneos tiveram na sua vida: o aparecimento o período e a descoberta de que tinha diabetes. A bem da verdade, o impacto não é mencionado, mas sim inferido por aquilo que é dito. No centro está o sangue, a pequena gota que é analisada por causa da doença, e a torrente que a natureza expele do seu corpo.

É num líquido também, mas em água em vez de sangue, que um homem japonês flutua, arrastado pela corrente, enquanto um jovem grava tudo, naquilo que adivinhamos ser o cenário de uma catástrofe natural. A narradora vê obcecadamente o vídeo que eterniza este momento e desenvolve uma relação de proximidade com o jovem japonês, como se os dois assistissem impotentes às manifestações do poder da natureza nas suas vidas.

José Gardeazabal domina na perfeição o fluxo de consciência que o tom confessional exige, manipula o ritmo de forma exemplar, com uma cadência de frases que nos submerge numa história original e misteriosa e um final com margem de sobra para múltiplas interpretações. Uma estreia auspiciosa para José Gardeazabal.

quinta-feira, 19 de março de 2015

O que é que a Granta tem: “Híma” de Luísa Costa Gomes


Um curto conto moral em que Luísa Costa Gomes nos relata a saga da construção de um barco na Islândia, em que as múltiplas peripécias se apresentam como uma força incontornável do destino empenhada em contrariar as vontades dos homens. No pólo oposto os cavalos islandeses que enfrentam as intempéries baixando a cabeça e fincando os cascos no chão, personificando o Híma, a espera resignada mas firme.

Como diriam os brasileiros, para quê dar murros em pontas de facas, tentando contrariar o fatal? Por vezes o melhor a fazer é permanecer imóvel e deixar que o destino siga o seu curso. Contra o poder dos imprevistos, o poder da resistência. E os barcos acabarão por se construir e os cavalos por escapar às fúrias dos ventos.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O que é que a Granta tem? “Mas Já Nada É Sagrado?” de Salman Rushdie


A religião é um território do poder e ninguém conhece melhor a extensão do poder da religião do que Salman Rushdie, que por questionar o que outros têm como inquestionável se tornou num alvo a abater, sem nunca ter tido a tentação de se calar.

O texto de Rushdie que a Granta dedicada ao “Poder” nos traz foi apresentado em seu nome por Harold Pinter numa conferência de tributo a Herbert Read, um poeta e critico literário anarquista britânico. Rushdie parte da questão daquilo que é sagrado, percebendo que o crente nunca se coloca em causa, acreditando sempre estar certo. Acontece que o sagrado é algo definido num processo histórico, e não um atributo inalienável, pelo que pode e deve ser colocado em causa. “A ideia de sagrado é uma das mais conservadoras de qualquer cultura, pois procura transformar outras ideias em crimes – a Incerteza, o Progresso, a Mudança”, alerta Rushdie.

Uma teoria muito curiosa que Rushdie nos apresenta foi defendida por Arthur Koestler, que considera a linguagem como a principal causa da agressão, porque a expressão de conceitos abstractos requer um nível de sofisticação que conduz a uma totemização e, consequentemente, a disputas entre grupos com diferentes totems. Essa ideia fica bem patente nos esforços da religião para privilegiar uma linguagem, sobrepor um texto aos outros, enquanto a literatura vive de um diálogo entre linguagens, narrativas e valores e das transformações geradas por esse processo. O romance nasce da tensão e não da união, ou se se preferir, segundo Foucault, da transgressão.

Levando esta questão mais longe, importa referir que o poder da religião se dá porque “a ideia de deus é, em simultâneo um repositório do nosso encantamento pela vida, uma resposta às grandes questões da existência, e também um livro de instruções”, mas a literatura ao colocar-nos em confronto com diferentes vozes, ao permitir que na nossa cabeça se gere um debate de ideias, satisfaz a nossa necessidade de transcendência, sem nos dar regras e permitindo-nos criar uma perspectiva crítica sobre as potenciais respostas que poderemos encontrar para as grandes questões da vida.

Rushdie apresenta-nos de forma muito interessante as vantagens da literatura face à religião, demonstrando que fazendo face às mesmas necessidades, a literatura tem a mais-valia de ser desprovida de poder, de sacralização. A literatura existe e apenas faz sentido enquanto realidade questionável e, nos tempos que correm, é cada vez mais importante não nos esquecermos que o verdadeiro poder de cada um de nós é questionarmos o que nos é apresentado como dogma.

sábado, 16 de agosto de 2014

O que é que a Granta tem? “O Bom Déspota” de José Eduardo Agualusa


A segunda Granta portuguesa abre com um conto de um dos pesos pesados da literatura em língua portuguesa. Mas não apenas isso. Abre com um acto de coragem, ao apresentar-nos um perfil na primeira pessoa de um déspota angolano, em tudo semelhante ao José Eduardo mais célebre desse país.

Nepotismo, o controlo do povo pela pobreza e ignorância e a perpetuação no poder pela distribuição de riquezas, há neste breve conto espaço para abordar todos estes temas. Mas há um princípio exposto que se reveste de alguma nobreza: o líder não deve assumir posições, mantendo-se num silêncio que todos confunda e baralhe. A nobreza deste princípio está em partir da crença de que a coerência, ou a sua percepção, é um atributo do líder, o que tendo em conta a realidade política portuguesa, em que governantes desdizem o que disseram semanas antes, com a mesma convicção com que defenderam o que agora rejeitam, revela alguma elevação.

No final Agualusa deixa-nos reticências quanto ao futuro, dando crédito à velha máxima de que a história se repete. Muitas vezes o que cria os regimes é o que acaba por destruí-los e não há medidas preventivas que possam dominar eternamente a vontade dos povos. Realidade ou ficção?

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O que é que a Granta tem? “Ter medo” de Valter Hugo Mãe


Comecei a ler a espécie de confissão de Valter Hugo Mãe que encerra a 1ª Granta portuguesa com um enorme preconceito, sem que nunca tivesse lido nada do autor. A mania de escrever sem maiúsculas cheirava-me a pedantismo, a escritor que estava mais preocupado em arranjar um estilo do que em focar-se na obra. Parecia-me de uma enorme vontade de aparecer e quando vi as suas fotos nu na Granta pensei “pronto, aqui temos mais um momento disruptivo”. Tudo me parecia artifícios para esconder a obra. E só se quer esconder aquilo a que não se quer que seja prestada atenção.

Pois bem, penitencio-me perante vós, meus leitores, e perante Valter Hugo Mãe, que com este simples texto me convenceu a querer lê-lo, a querer saber o que é que o homem que não morreu em 1996 por ter andado nu numa movimentada avenida de Braga tem mais para nos mostrar.

Valter Hugo Mãe diz-nos que mesmo despido fisicamente, a sua nudez nunca será tão grande como na poesia, que o toma de forma descontrolada, incapaz de se esconder nas palavras. Curiosamente é em prosa, o género mais controlado, que se volta a despir para quem o lê, numa tentativa de se enfrentar, de se matar, de se mostrar vulnerável para poder ser forte, para que a ideia da perenidade se esgote e a imortalidade do poético o domine. É preciso ter medo para poder ser corajoso.

domingo, 11 de maio de 2014

Uma fotonovela na Granta 3


O terceiro número da Granta portuguesa, com o tema “Casa”, está a chegar. Alguns assinantes já a receberam, mas o comum dos mortais só a encontrará nas livrarias a 23 de Maio. A publicação de um conto de Murakami é um dos pontos centrais desta edição, que conta ainda com reincidências de Hélia Correia e, sobretudo, de Valério Romão, autor que deixou meio mundo siderado com o seu conto na 1ª Granta (eu incluído) e que teve honras de publicação no site da Granta inglesa.

Mas nem só de escrita vive a Granta e uma das novidades desta edição é a inclusão de uma fotonovela da autoria do dramaturgo Tiago Rodrigues. Deixo-vos com dois teasers e convido-vos também a verem o making of no site do Público.






A Granta promete, mais um vez. Eu vou entrar agora na 2ª revista. Novidades para breve.

domingo, 9 de março de 2014

O que é que a Granta tem? “Rescaldo” de Rachel Cusk



Cunfuso. Assim se descreve da melhor forma o meu estado de espírito após ler o conto de Rachel Cusk, em que o divórcio e os papéis de género são os temas principais. Na verdade o divórcio é o ponto de partida, mas é a problemática do género que assume um maior destaque, num discurso tendencialmente racionalizante mas com pitadas de arrebatamentos emocionais.

No início ficamos com a ideia que Cusk nos levará a uma visão esclarecedora e pouco óbvia do papel da mulher na sociedade moderna. Fala-nos mesmo de como o papel de mão e de dona de casa afastaram a sua mãe do seu lado feminino, a tornaram menos mulher. O conceito de mulher está então aqui associado a uma pulsão sexual e, ao reprimi-la, reprime-se a feminilidade. Faz sentido. Ou faria, se todo o restante discurso no conto não fosse contraditório e, de repente, Cusk não categorizasse a educação académica como uma experiência que masculiniza a mulher, culpabilizando a sua mãe por a ter condicionado a agir como um homem. Tenho alguma esperança que este discurso seja irónico, embora não parece sê-lo, e é de resto apenas um dos exemplos de categorizações no texto de actividades masculinas ou femininas, cujo ex libris é a referência a si e ao seu ex-marido como “travestis” porque ele estava em casa a tomar conta das filhas (tornando-se numa mulher), enquanto ela trabalhava (tornando-se num homem).

Interessante que em todo o conto não haja espaço para falar de sentimentos e de amor, mas apenas de categorias pouco criteriosas percepcionadas por uma sociedade indefinida. Fiquei com a sensação que Rachel Cusk é uma daquelas feministas de trazer por casa, que se serve das causas quando lhe é conveniente: igualdade de género nos direitos que a beneficiam, mas condição de excepção quando já não é o caso – como quando o que está em causa é a guarda das filhas e o argumento “as filhas são da mãe” é demasiado sedutor. Um momento não muito brilhante.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Como publicar um conto na Granta


O Natal já passou, mas pelos vistos a Granta reservou um mega presente para alguns felizardos e criou um desafio que permitirá a jovens escritores de língua portuguesa (nascidos após 1 de Maio de 1975) terem os seus contos publicados numa edição especial da revista, à semelhança do que já é tradição na edição inglesa.

Segundo Carlos Vaz Marques "no mundo de língua inglesa, o número especial que, de dez em dez anos (desde 1983), é dedicado aos "twenty under forty" já é um marco, tendo ajudado à projecção de autores como Julian Barnes, Martins Amis e Kazuo Ishiguro. A nossa ambição é fazermos o mesmo para a língua portuguesa."

Jovens escritores talentosos do mundo lusófono eis a vossa oportunidade. Submetam o vosso conto, com um mínimo de 10 mil caracteres e um máximo de 50 mil, até 31 de Julho e arrisquem-se a vê-lo publicado na revista que chegará aos escaparates em Maio de 2015. Já tinha referido que esta edição será também traduzida para inglês e distribuída além fronteiras?


Podem consultar o regulamento aqui.

domingo, 19 de janeiro de 2014

O que é que a Granta tem? “Gente famosa” de Orhan Pamuk


Personagens que em pouco mais de 20 páginas ganham vida própria, são movidas por vontades, têm carne e osso, não sendo meras criações unidimensionais de um escritor que lhes indica o caminho que vão percorrer. As personagens de Pamuk andam pelos seus pés, e o escritor acompanha-as, registando os seus percursos, eternizando na escrita as suas vidas. E é essa a magia de um conto no qual não acontece nada de notável, mas que no pulsar dos pequenos momentos inscreve no leitor impressões profundas.

Através de Pamuk ficamos a conhecer a história de dois irmãos que, noutros tempos mais simples, se entretinham a brincar com cromos de pessoas famosas que saíam nas pastilhas elásticas. Entre os jogos do “Cima ou Baixo”, que lhes permitiam ir trocando cromos, há uma tragédia familiar que se vai discretamente desenrolando: o pai das crianças parece ter abandonado a família. Ali, um dos irmãos, pelos olhos de quem vemos a história, estando consciente da ausência do pai, como criança que é, está mais preocupado em desafiar o irmão e completar a sua colecção de cromos. E enquanto a mãe sofre com a partida do marido, Ali sofre com a perda dos seus cromos para o irmão.

Esta foi a minha primeira leitura de Orhan Pamuk, Prémio Nobel da Literatura, e não poderia ter ficado com uma melhor impressão. Mais do que procurar cenários novos, Pamuk apresenta-nos o que nos é familiar, mas sobre um novo ponto de vista. Sem grandes artifícios. Sem esforço para surpreender. Apenas partilhando vivências. Um autor a descobrir.

domingo, 22 de dezembro de 2013

O que é que a Granta tem? “Espelho da água” de Rui Cardoso Martins


Uma manhã normal a bordo de um cacilheiro que atravessa o Tejo, levando para Lisboa as suas hordas de trabalhadores. É assim que começa o conto de Rui Cardoso Martins, em que a normalidade rapidamente é colocada de lado quando os esforços para pescar um choco (outro choco na Granta?!) são interrompidos pelo cadáver de uma mulher a boiar nas águas do rio. Desse avistamento perturbante parte-se para um périplo por alguns dos viajantes do barco, que em breves instantes nos revelam o que lhes vai pela cabeça.

O conceito deste conto é interessante, sem dúvida, mas parece-me que a forma como as personagens foram compostas não contribui muito para o sucesso da história. Os detalhes das vidas das personagens, a forma como falam, até mesmo o tipo de personagens que encontramos naquele barco, tudo parece estar perigosamente próximo do cliché. Ao que acresce uma falta de coesão que é tanto consequência de um discurso diletante, com saltos abruptos entre discurso directo e indirecto que não conseguem tornar a leitura mais cativante, como de um ângulo não muito claro da história. Em alguns dos relatos confessionais dos passageiros, o cadáver a boiar parece ser uma ponte para os seus pensamentos, noutras nem por isso. A mulher morta e aquelas personagens estão portanto ali por acaso? Os pensamentos das personagens seriam os mesmos se não houvesse a morta? Talvez o objectivo seja só relatar uma viagem de pessoas que vão para Lisboa, numa abordagem de mera observação, sem qualquer propósito narrativo maior. Mas será relevante fazê-lo?

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A dependência dos livros: edição Novembro de 2013


Com 40€ euros apenas pode-se comprar muitos livros. Com esse orçamento consegui este mês juntar à minha biblioteca oito obras. É verdade que tive um vale de 10€ da Fnac, mas um vale tem pouco valor se não o soubermos rentabilizar, missão que cumpri ao quase conseguir comprar dois livros com esse modesto pecúlio (tive de fazer o sacrifício de pagar do meu bolso 2€ e pouco). Mas tirando o vale, qual foi o meu segredo? Muito fácil: uma ida à Fyodor Books (que me rendeu quatro livros por 9€), uma mega promoção na Fnac (obras do Italo Calvino com 50% de desconto) e uma grande descoberta (o primeiro volume do teatro do Prémio Nobel Harold Pinter, editado pela Relógio D’Água, a apenas 5€, também na Fnac). A estas aquisições juntaram-se ainda o 2º volume da Granta portuguesa, comprado na Bertrand, e um dos volumes das obras completas do Bernardo Santareno, que a Pó dos Livros Vintage me conseguiu arranjar.

Aqui fica a lista completa:

Granta 2 – Poder” (Tinta da China)
“Paula” de Isabel Allende (Mil Folhas)
“Catarina de Médicis” de Balzac (Portugália Editora)
“Os Manuscritos de Jeffrey Aspern” de Henry James (Relógio D'Água)
“Tereza Batista Cansada da Guerra” de Jorge Amado (Planeta DeAgostini)
“Obras Completas - 3º Volume” de Bernardo Santareno (Caminho)
As Cidades Invisíveis” de Ítalo Calvino (Teorema)
Teatro I” de Harold Pinter (Relógio D'Água)

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

O que é que a Granta tem? “Diário de um fumador” de Simon Gray



Equilíbrio. A boa escrita é um jogo de equilíbrio, um tapa e destapa constante que envolve o leitor, proporcionando-lhe uma viagem emocional, e não apenas  a leitura das palavras que alguém escreveu. Seria demasiado fácil para Simon Gray apresentar-nos um relato dramático da doença e dos inconvenientes da velhice, ainda por cima no formato de diário, tão convidativo a um tom excessivamente confessional e frequentemente indulgente. Mas Simon Gray não quer lágrimas, se algo o move é a partilha das histórias e dos pensamentos que ainda tem em si.

A doença e a velhice estão lá, mas quase sempre vivenciadas por outras pessoas: Harold Pinter, por exemplo (sim, estamos a falar do vencedor do Prémio Nobel da Literatura), ou um homem cujas peripécias Simon acompanha ao longe, durante as férias, e a que carinhosamente chama o “Sr. Alzheimer”, embora no final comece a ter dúvidas que ele tenha de facto Alzheimer. Na preocupação com a doença de Harold Pinter percebe-se um efeito espelho, uma preocupação consigo próprio e com a doença que o assombra, mesmo que inconscientemente, ou não fosse ele um fumador convicto.

Pelo meio há histórias de infância, algumas melancólicas (o tempo passado na casa dos avós), outras divertidas (a obsessão pela literatura de laivos eróticos de Hank Janson). Há também teorias sobre a importância histórica das hemorróidas, silenciosos conflitos com outros hóspedes pela conquista do melhor lugar no areal do hotel e breves momentos em que o cansaço e um sentimento de derrota se apoderam da escrita.


E é nesta gestão daquilo que nos conta que se revela a excelência de Simon Gray, que domina como ninguém a técnica do diário, à qual confere um registo de oralidade que torna a leitura ainda mais envolvente. Na verdade não estamos a ler algo, estamos a conversar com um amigo, um amigo com muito para contar. Obrigado Granta.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O que é que Granta tem? "Jazz, rosas e andorinhas" de Afonso Cruz



Dizia um professor meu que a objectividade era a explicitação de subjectividades. Sábias palavras que me obrigam a dizer-vos, desde já, que comecei a ler o conto do Afonso Cruz, “Jazz, rosas e andorinhas”, com um pé atrás e alguma curiosidade (ainda não tinha lido nada dele). Em tempos, na Pó dos Livros, folheei a “Enciclopédia da Estória Universal” e “O Livro do Ano” e de imediato se formou na minha cabeça a ideia de que o Afonso Cruz era um escritor algo pedante. Tenho uma tendência natural para achar que quem aposta demasiado na forma é porque não tem muito para dar em termos de conteúdo e aquela rejeição ostensiva de uma estrutura tradicional suscitou-me reservas. Mas estou sempre disposto a ler e a destruir os meus preconceitos.

Tendo lido “Jazz, rosas e andorinhas” tenho coisas más para dizer, mas também tenho coisas boas. Comecemos pelo mais difícil. Não gostei dos diálogos, achei-os muito pouco naturais. Convenhamos, conversar com um estranho que nos invadiu o quarto de hotel sobre a natureza do “eu” não é algo muito verosímil. E o diálogo, no início do conto, entre a personagem principal, Erik, e o seu amigo Isaac, deixa muito a desejar. Parece um aglomerado de frases pré-feitas às quais se tenta impor um sentido de coerência, mas que pouco mais conseguem do que uma conversa de surdos. A estes diálogos mancos junta-se um conceito excessivamente cerebral, que dá ao conto uma aura de superficialidade e de distanciamento que não me agrada, e uma imagem inicial, a do desiludido por amor que abraça nu um canteiro de rosas, que consegue a proeza de ser forçada mas ao mesmo tempo um cliché. E pronto, estamos falados quanto a defeitos.

Dito isto, o conto não é mau. A ideia, apesar de muito cerebral, é pelo menos interessante e memorável. Há um bom timming de narrativa, que torna a leitura fluida, mesmo que a escrita nem sempre seja tão musical quanto seria desejável. E há algumas ideias bastante poéticas, como a do homem que insiste em telefonar para uma casa vazia na esperança de encontrar a mulher que o deixou. Perante esta imagem, estamos até dispostos a esquecer o percalço inicial do abraço às rosas.


Resumindo e concluindo, “Jazz, rosas e andorinhas” não é um dos pontos altos da Granta, mas também não é um mau momento. É um conto eficaz o suficiente para deixar um leitor que não conheça Afonso Cruz com vontade de ler mais coisas suas. Eu vou ler, sem dúvida.

domingo, 6 de outubro de 2013

O que é que a Granta tem? "Esboço para um Livro" de Ryszard Kapuściński


O poder da oratória na política foi-se perdendo, acompanhando o crescente descrédito da palavra dos políticos. Parece-nos por isso exótico o mundo que Ryszard Kapuścińsk nos apresenta, em que países clamam pela liberdade, gente alheia aos media toma decisões com base em contactos directos que tem com os políticos, e jornalistas idealistas colocam a sua vida em risco para cobrir acontecimentos que lhes parecem incontornáveis. Há neste mundo uma inocência comovente, de quem ainda não foi pervertido. Mas será mesmo assim? Não me parece que usar o racismo como resposta ao racismo seja um acto inocente…

“Esboço para um Livro” é um texto interessante de Ryszard Kapuścińsk, que nos dá que pensar, sem ser politicamente correcto, embora não percebamos exactamente onde é que o tema do “EU” encaixa, mas esse é um problema editorial que nada tem a ver com Kapuścińsk. Há um estilo jornalístico muito vincado no texto (já vos disse que Kapuścińsk é um conceituado jornalista?) e confesso que, desde o desaire de “Por Quem os Sinos Dobram” do Hemingway, a minha relação com híbridos de jornalismo e literatura nunca mais foi a mesma. Talvez por isso sinta que falta uma dinâmica narrativa mais forte, capaz de prender e marcar o leitor. Mas não deixa de ser uma leitura agradavelmente descontraída.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O que é que a Granta tem? Poemas inéditos e reeditados de Fernando Pessoa



Pisamos terreno sagrado e perigoso. Manda o bom senso que duas ressalvas iniciais sejam feitas. A primeira para realçar a genialidade inquestionável de Fernando Pessoa. A segunda para reconhecer a sensatez do director da Granta ao decidir publicar inéditos do espólio pessoano.

Talvez pelas justificadas elevadas expectativas que o nome Pessoa suscita, serei obrigado a dizer que, por muito sedutora que seja a ideia de ler inéditos do autor, os poemas apresentados não me deixaram extasiado. Jerónimo Pizarro e Carlos Pittella-Leite propõem-nos oito sonetos de Fernando Pessoa, cinco inéditos – três reeditados, cinco completos – três inacabados. A decisão de incluir poemas inacabados parece-me particularmente questionável. Iria mais longe: a decisão de quem gere a obra literária de Fernando Pessoa de permitir a publicação deste tipo de poemas pode ser até danosa para a imagem do poeta, tão dado à perfeição. Compreendo que, dado o relevo de Pessoa, haverá um interesse académico por estes escritos, mas convenhamos: será relevante para o leitor conhecê-los? E seria da vontade do autor que fossem publicados? Não me parece. Mas, falarei com maior profundidade da questão das publicações póstumas nas próximas semanas, voltemos agora à Granta.

Dos cinco sonetos inéditos, o que mais se destaca é sem dúvida “Alma de Côrno”. Porquê? Porque é surpreendentemente irreverente e bem-humorado, como uma boa dose de referências indirectas a questões escatológicas. É divertido e leva-nos a questionar a imagem séria e cerebral que temos de Fernando Pessoa. Os outros dois sonetos completos, “Soneto de Mal-Dizer e “Que Posso Eu Dar”, são interessantes mas inócuos.

Nos três poemas reeditados encontramos o melhor e o pior de Pessoa. “Mãe de Deus” é um soneto incompleto e percebe-se porque é que não foi acabado, mas a verdade é que mesmo que o tivesse sido não faria grande diferença. Já de “O Rei” apenas se pode dizer bem. Com um lirismo que caracteriza muita da poesia do ortónimo, Pessoa evidencia a transcendente superioridade do espiritual face ao terreno e corpóreo, contrapondo à figura do Rei a de Jesus.

O balanço é claramente positivo, embora as expectativas não tenham sido concretizadas. E de que melhor forma terminar do que com uma das estrofes de “O Rei”? Deixo-vos com Pessoa.

“ O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto do throno os seus mesquinhos
Ao meu rei coroaram-O de espinhos
E por throno Lhe deram uma cruz.”


(poema completo na p.115 do 1º número da Granta)

domingo, 15 de setembro de 2013

O que é que a Granta tem? “Mar Negro” de Ricardo Felner





Em 10 páginas Ricardo Felner serve-nos um prato cheio: o dia-a-dia de um chefe, os seus planos para um novo menu, a doença da filha, discussões entre empregados do restaurante, uma viagem a Istambul, a cura da filha, a sucesso do restaurante, críticas gastronómicas e, espantem-se, uma receita de chocos. Lemos e ficamos empanturrados. Parece que estamos a sair de um restaurante de comida a quilo, onde comemos tudo o que cabia no prato, sem critério, e agora estamos enjoados.

A personagem central do conto é um homem banal. Mas a banalidade da personagem não serve de desculpa à banalidade da escrita. A escrita tem a obrigação de elevar, de revelar o interessante mesmo nas personagens mais desprovidas de encantos. Então e se personagem não tiver nada digno de interesse? Bom, nesse caso escrever sobre ela não será a melhor ideia!

Jorge Amado experimenta em “Dona Flor e Seus Dois Maridos” a fusão entre literatura e culinária e deixa que Dona Flor nos apresente várias receitas durante o livro. Mas fá-lo com talento. As receitas têm ali um propósito: são a manifestação da sensualidade de Dona Flor. Ricardo Felner escreve sem inspiração uma receita de chocos, sem qualquer cunho pessoal da personagem. Apenas uma receita, jogada num parágrafo.

Um relato fragmentado, sem momentos de génio, termina numa cena que pretendia ser épica, à semelhança do que Valério Romão fez no seu conto. Pretendia é a palavra-chave, porque não o é. Um final como estes constrói-se, tem de haver um crescendo, uma manipulação do texto que torne credível o que vai acontecer e não seja só “tive uma ideia gira e diferente para terminar o conto”. Porque é essa a sensação com que ficamos, que aquele final é despropositado, que foi ali colocado numa tentativa de tornar o conto mais relevante. Objectivo não atingido. Quanto muito, o final acentua as falhas de um texto que quer ser muita coisa e que acaba por ser só uma amálgama de elementos díspares que não combinam uns com os outros. A Granta merecia melhor.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

O que é que a Granta tem? “Intervencionados” de Hélia Correia





Saramago disse uma vez que Agustina aceitava tudo o que lhe surgia na escrita. Não era um elogio. O mesmo poderia ter dito sobre Hélia Correia se tivesse lido “Intervencionados”, o conto que escreveu para a Granta.

Os olhos esforçam-se por focar o texto, que frase após frase, deambula sobre temáticas diversas, formando uma torrente de palavras que afastam a mente das páginas. De repente já nem sabemos muito bem do que é que Hélia Correia fala, e ela tem alguma noção disso, já que sente necessidade de justificar o “luxo da deriva”, argumentando que o “eu”, tema central do seu conto e do 1º número da Granta, está em toda a parte. Poderá estar, mas um luxo como a deriva paga-se caro, paga-se com o sacrifício de leitores.

No final deste pequeno conto (que parece ser grande, tal a cadência de ideias articuladas) há uma tentativa de história. Tímida e pouco construída. Há ali um vislumbre de algo interessante mas que nunca se concretiza. Não chega.

Afinal, de que “eu” nos fala Hélia Correia? Sinceramente, não sei, mas também não fiquei com muita vontade de descobrir. Tentarei fazer as pazes com Hélia Correia lendo, algures no futuro, “Lillias Fraser” e talvez então perceba o quão injusto fui.