Ler um livro escrito por alguém
que nos é querido é sempre uma experiência estranha e envolta em expectativas
que esperamos que não sejam defraudadas. Mas há sempre aquele momento em que
pensamos “e se o livro for mau?”, e damos a volta à cabeça, procurando
comentários evasivos que não violem a nossa consciência, mas também não revelem
a nossa verdadeira opinião. Felizmente não foi este o caso. Desde o primeiro
momento, conhecendo o verdadeiro toque da Midas da autora deste livro, incapaz
que é de produzir algo que não seja de qualidade, acreditei em absoluto nos
méritos desta obra e digo-o sem reservas: não me decepcionei.
Isto para vos dizer também,
respeitando a máxima que me ensinaram na faculdade e que defende que a
objectividade é a explicitação das subjectividades, que não podem esperar de
mim uma análise distanciada deste livro, porque me unem à sua autora os mais
profundos laços de carinho e gratidão pelo muito que me ensinou sobre a escrita
e a leitura. Mas que isto não retire valor às minhas considerações, porque
exprimem honestamente a minha opinião.
Dizia
George Steiner que o apoquentava particularmente, tomando por exemplo o período
nazi, que seres humanos que cometiam actos monstruosos fossem simultaneamente
profundos apreciadores de arte, com a sensibilidade que isso requer. Ana Maria
Vilhena inverte um pouco esta questão e leva-nos a pensar em como é que pessoas
que defendem bons princípios podem não os aplicar ao seu quotidiano. Esta
questão surge na cabeça do leitor recorrentemente em “Fiapos de Tempo” perante
as contradições de Jacinto Maria, um antepassado da autora e a personagem
principal do livro.
Jacinto
Maria é um republicano em tempos de monárquicos, que sonha com o fim dos
desmandos dos Reis e dos Governos por eles apoiados. Mas a República
revelar-se-á uma fonte contínua de desilusões e, aquilo que parecia ser uma
panaceia, converte-se rapidamente em novos problemas. Na verdade, as
diferenças em termos de liberdades entre a Monarquia e a República são bem
pequenas e, por vezes, em vez de progressos assiste-se mesmo a retrocessos.
Basta dizer que nas primeiras eleições da República o voto era mais restrito do
que nos tempos dos reis.
Mas se as
opiniões de Jacinto Maria quanto ao exercício do poder político e ao respeito
pelos direitos dos trabalhadores revelam uma profunda consciência do outro, em
comportamentos muitas vezes de puro altruísmo, a atitude do mesmo Jacinto Maria
com a sua mulher e filhas poderá ser caracterizada de várias formas, nenhuma
das quais veiculando algo que remeta remotamente para alguma forma de respeito.
Francisca Luísa, a famigerada esposa, é tratada quase sempre de forma
aviltante, como se fosse um ser desprovido de inteligência. Germínia, a filha
mais nova, não tem melhor sorte, embora a sua irmã mais velha, Balbina, tenha
direito a um tratamento mais digno. Jacinto, um homem minimamente letrado, o
que era raro na altura, chega mesmo a querer privar as filhas dessa mais-valia,
apenas por serem mulheres. Um dos pontos altos do livro, a cena em que Jacinto descobre que Germínia comprou uma
máquina de costura, tem tanto de caricata como de revoltante: as mulheres não só
não deviam ter direito à educação, como também lhes deveria ser vedado o acesso
a tudo o que pudesse facilitar as suas tarefas domésticas.
A mestria
de Ana Maria Vilhena está em não tomar partidos na sua narração, em adoptar uma
postura quase de mera espectadora e é nessa perspectiva que a questão feminina,
por exemplo, nos é apresentada. Seria muito fácil fazer de Jacinto Maria uma
figura odiosa, recusando-se a percebê-lo e a explicá-lo, e apresentar as
mulheres como vítimas. Mas se algo fica patente no livro é que,
independentemente dos seus condicionantes, são as próprias mulheres que
determinam no essencial o seu caminho. Não é à toa que Maria de Assunção, a mãe
de Jacinto, tem a posição de chefe de família de facto, senhora de uma atitude
firme e decidida, em nada aquém da de qualquer homem. Já Francisca Luísa é uma
fraca figura, totalmente à mercê das vontades do marido, atitude que não
conseguiu transmitir à sua filha Germínia que, seguindo as pisadas da avó, não
se inibe de tomar iniciativas. Uma visão corajosa, a de que as mulheres são
muitas vezes o agente do seu próprio destino, com a qual estou totalmente de
acordo.
Outro dos
principais méritos de Ana Maria Vilhena é o de, narrando uma história que
abarca um longo período histórico (desde o primeiro quartel do séc. XIX até
quase à década de 40 do séc. XX), conseguir incutir no texto uma vertente
informativa sobre cada período, nomeadamente em termos políticos e de estilo de
vida, de uma forma natural, sem cortar a história nem tornar a leitura maçuda.
Depois de uma experiência negativa com o uso de jornais num romance (Saramago
em “O Ano da Morte de Ricardo Reis” – sou um fervoroso adepto de Saramago, mas
não deste livro), confesso que fiquei de pé atrás quando percebi que a leitura dos
jornais seria recorrente no livro, temendo deparar-me com páginas e páginas de
incursões declamatórias por títulos de jornais, mas o resultado final superou
por completo as minhas expectativas, sendo as referências acompanhadas de comentários
de Jacinto Maria ou introduzidas em conversas, de maneira a tornarem-se unas
com a narrativa.
Através
de “Fiapos de Tempo”, a meio termo entre a biografia e o romance, revisitamos
as memórias dos nossos avós e dos seus antepassados, reconhecendo-os nas
personagens e comportamentos tão tipicamente alentejanos que nos surgem em cada
página. De uma escrita natural, que na sua aparente simplicidade esconde a
mestria de quem fez da língua portuguesa a sua vida, a leitura de “Fiapos de
Tempo” faz-se com o mesmo prazer com que lemos os clássicos da nossa
literatura. Espero que seja o primeiro de muitos livros!
Sendo a
edição deste livro assegurada pela Vírgula, se o quiserem comprar podem fazê-lo no
site do Sítio do Livro ou na livraria Leya na Barata, em Lisboa.