Baltasar e Blimunda. Há encontros que estão destinados a acontecer.
O mundo move-se e sob cada sol os caminhos são percorridos, minuto após minuto,
talvez de acordo com uma vontade superior. Pouco importa se o é ou não, o que
importa é que Baltasar e Blimunda se encontraram num auto de fé. Numa cerimónia
que festeja o fim e a condenação, celebrou-se naquele dia o início e a
aceitação e, sem o saber Baltasar mas sabendo-o Blimunda, naquela mesma noite,
quando comerem sopa pela mesma colher, os seus destinos estarão unidos para
sempre.
“Memorial do Convento” de José Saramago conta-nos a história
do sereno amor do maneta Baltasar e da mística Blimunda, nos atribulados tempos
da construção do Convento de Mafra. Mas antes do convento há outra construção
que se inicia: a da passarola, projecto antigo do padre Bartolomeu Lourenço,
que hereticamente prometeu a quem tudo tem, D. João V, o acesso em vida ao
reino dos céus. O lento processo de criação da passarola e as artes nela empregadas
são de suma importância para o livro, mais até do que a construção do Convento,
que se contenta em ser um pano de fundo quase sempre distante, o que é
paradoxal dado o nome do livro. Diga-se com clareza: haveria memorial com ou
sem convento, sem passarola não.
E é esse o problema de “Memorial do Convento”, que o afasta
do paradigma de excelência que é o “Ensaio Sobre a Cegueira”: a falta de foco.
Pegamos no livro a pensar que vamos ler um livro centrado na construção do
Convento de Mafra. Depois percebemos que se calhar não, se calhar o livro se
centra sobretudo na desmedida vontade de um rei que é um Sol à portuguesa (uma
Lua portanto). E entram no livro Baltasar e Blimunda, com a sua comovente
dimensão supra-humana, e queremos perder-nos na sua história, mas por vezes
somos afastados, sem perceber porquê, e tornamos-nos, algo a contragosto,
testemunhas dos debates teológicos internos do padre Bartolomeu (que de tão
herméticos nos deixam à nora), do périplo de João Elvas aquando da entrega da
Infanta Maria Bárbara ao noivo espanhol, do transporte de uma monumental pedra,
que durou 8 dias e mais de 30 páginas. Ganharia o livro em nos aproximar mais
daquelas que são 2 das melhores criações de Saramago, Baltasar e Blimunda, sem
tantas deambulações e história acessórias.
Dito isto, não haverá palavras suficientes para descrever o
brilhantismo do narrador. O narrador em Saramago é tudo, uma espécie de oráculo
milenar, que tudo sabe, tudo conhece, que não se limita a narrar: comenta,
analisa, revela. E esse é um dos encantos de ler Saramago, a ideia de que
ele está ao nosso lado a contar-nos a história, como um sábio nos tempos do
antigamente, em torno de uma lareira, ao anoitecer.
“Memorial do Convento” não é um livro fácil, nem será uma
boa escolha para quem procura um livro para se distrair ou para quem nunca
tenha lido Saramago, mas qualquer aficionado da literatura, particularmente
da portuguesa, tem de conhecer a história de Baltasar e Blimunda. Um amor que
prospera no silêncio, um silêncio de palavras
obliterado por uma partilha incondicional. Baltasar e Blimunda pertencem-se e
pertencem-nos.
Classificação: 16/20
Classificação: 16/20
(Livro editado em Portugal pela Caminho)
foi o meu primeiro Saramago e fiquei muito feliz com a minha escolha. acho que me preparou para todos os Saramagos que se seguiram :)
ResponderEliminarMas tu és uma leitora resistente, preparada para enfrentar as dificuldades de um livro :P Para quem está a apalpar terreno é melhor uma coisa não tão densa sob pena de a pessoa se sentir desmotivada a ler outros livros. Mas sim, prepara para tudo! Tendo sido os meus primeiros Saramagos "O Ano da Morte de Ricardo Reis" e o "Ensaio Sobre a Cegueira" também sinto que estou preparado para tudo, para o pior, e para o melhor, respectivamente ;)
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