quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Em estado crítico: "Fiapos de Tempo" de Ana Maria Vilhena

Ler um livro escrito por alguém que nos é querido é sempre uma experiência estranha e envolta em expectativas que esperamos que não sejam defraudadas. Mas há sempre aquele momento em que pensamos “e se o livro for mau?”, e damos a volta à cabeça, procurando comentários evasivos que não violem a nossa consciência, mas também não revelem a nossa verdadeira opinião. Felizmente não foi este o caso. Desde o primeiro momento, conhecendo o verdadeiro toque da Midas da autora deste livro, incapaz que é de produzir algo que não seja de qualidade, acreditei em absoluto nos méritos desta obra e digo-o sem reservas: não me decepcionei.

Isto para vos dizer também, respeitando a máxima que me ensinaram na faculdade e que defende que a objectividade é a explicitação das subjectividades, que não podem esperar de mim uma análise distanciada deste livro, porque me unem à sua autora os mais profundos laços de carinho e gratidão pelo muito que me ensinou sobre a escrita e a leitura. Mas que isto não retire valor às minhas considerações, porque exprimem honestamente a minha opinião.




Dizia George Steiner que o apoquentava particularmente, tomando por exemplo o período nazi, que seres humanos que cometiam actos monstruosos fossem simultaneamente profundos apreciadores de arte, com a sensibilidade que isso requer. Ana Maria Vilhena inverte um pouco esta questão e leva-nos a pensar em como é que pessoas que defendem bons princípios podem não os aplicar ao seu quotidiano. Esta questão surge na cabeça do leitor recorrentemente em “Fiapos de Tempo” perante as contradições de Jacinto Maria, um antepassado da autora e a personagem principal do livro.

Jacinto Maria é um republicano em tempos de monárquicos, que sonha com o fim dos desmandos dos Reis e dos Governos por eles apoiados. Mas a República revelar-se-á uma fonte contínua de desilusões e, aquilo que parecia ser uma panaceia, converte-se rapidamente em novos problemas. Na verdade, as diferenças em termos de liberdades entre a Monarquia e a República são bem pequenas e, por vezes, em vez de progressos assiste-se mesmo a retrocessos. Basta dizer que nas primeiras eleições da República o voto era mais restrito do que nos tempos dos reis.

Mas se as opiniões de Jacinto Maria quanto ao exercício do poder político e ao respeito pelos direitos dos trabalhadores revelam uma profunda consciência do outro, em comportamentos muitas vezes de puro altruísmo, a atitude do mesmo Jacinto Maria com a sua mulher e filhas poderá ser caracterizada de várias formas, nenhuma das quais veiculando algo que remeta remotamente para alguma forma de respeito. Francisca Luísa, a famigerada esposa, é tratada quase sempre de forma aviltante, como se fosse um ser desprovido de inteligência. Germínia, a filha mais nova, não tem melhor sorte, embora a sua irmã mais velha, Balbina, tenha direito a um tratamento mais digno. Jacinto, um homem minimamente letrado, o que era raro na altura, chega mesmo a querer privar as filhas dessa mais-valia, apenas por serem mulheres. Um dos pontos altos do livro, a cena em que Jacinto descobre que Germínia comprou uma máquina de costura, tem tanto de caricata como de revoltante: as mulheres não só não deviam ter direito à educação, como também lhes deveria ser vedado o acesso a tudo o que pudesse facilitar as suas tarefas domésticas.

A mestria de Ana Maria Vilhena está em não tomar partidos na sua narração, em adoptar uma postura quase de mera espectadora e é nessa perspectiva que a questão feminina, por exemplo, nos é apresentada. Seria muito fácil fazer de Jacinto Maria uma figura odiosa, recusando-se a percebê-lo e a explicá-lo, e apresentar as mulheres como vítimas. Mas se algo fica patente no livro é que, independentemente dos seus condicionantes, são as próprias mulheres que determinam no essencial o seu caminho. Não é à toa que Maria de Assunção, a mãe de Jacinto, tem a posição de chefe de família de facto, senhora de uma atitude firme e decidida, em nada aquém da de qualquer homem. Já Francisca Luísa é uma fraca figura, totalmente à mercê das vontades do marido, atitude que não conseguiu transmitir à sua filha Germínia que, seguindo as pisadas da avó, não se inibe de tomar iniciativas. Uma visão corajosa, a de que as mulheres são muitas vezes o agente do seu próprio destino, com a qual estou totalmente de acordo.

Outro dos principais méritos de Ana Maria Vilhena é o de, narrando uma história que abarca um longo período histórico (desde o primeiro quartel do séc. XIX até quase à década de 40 do séc. XX), conseguir incutir no texto uma vertente informativa sobre cada período, nomeadamente em termos políticos e de estilo de vida, de uma forma natural, sem cortar a história nem tornar a leitura maçuda. Depois de uma experiência negativa com o uso de jornais num romance (Saramago em “O Ano da Morte de Ricardo Reis” – sou um fervoroso adepto de Saramago, mas não deste livro), confesso que fiquei de pé atrás quando percebi que a leitura dos jornais seria recorrente no livro, temendo deparar-me com páginas e páginas de incursões declamatórias por títulos de jornais, mas o resultado final superou por completo as minhas expectativas, sendo as referências acompanhadas de comentários de Jacinto Maria ou introduzidas em conversas, de maneira a tornarem-se unas com a narrativa.

Através de “Fiapos de Tempo”, a meio termo entre a biografia e o romance, revisitamos as memórias dos nossos avós e dos seus antepassados, reconhecendo-os nas personagens e comportamentos tão tipicamente alentejanos que nos surgem em cada página. De uma escrita natural, que na sua aparente simplicidade esconde a mestria de quem fez da língua portuguesa a sua vida, a leitura de “Fiapos de Tempo” faz-se com o mesmo prazer com que lemos os clássicos da nossa literatura. Espero que seja o primeiro de muitos livros!


Sendo a edição deste livro assegurada pela Vírgula, se o quiserem comprar podem fazê-lo no site do Sítio do Livro ou na livraria Leya na Barata, em Lisboa.

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