“Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és os meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.”
Da cera das velas ardidas a Igreja foi criando as suas
grandes figuras, que como ídolos de barro presidem à História, destituídas do
direito mais fundamental que cada um possui: o de ser humano e poder escolher. Maria e Jesus viram a sua humanidade ser-lhes recusada. Maria foi até expurgada da
sua sexualidade, trocando a natural fecundação pela imaculada concepção. Nem o
direito de gerar um filho como as outras mulheres Maria teve, tal como Jesus, o
filho de um acto ascético, viu ser-lhe negada a possibilidade de falhar,
sentir e optar. Saramago restituiu a Maria e a Jesus a sua dignidade enquanto
seres humanos e apresenta-nos um Evangelho escrito pela perspectiva de Jesus,
não porque ele o narre, mas porque são os seus interesses que estão no centro
da história e não a caprichosa vontade divina.
Saramago realiza na escrita deste livro um acto de enorme
coragem, não só pelo quão herético é tudo o de nos apresenta (segundo as
crenças da Igreja), mas por agarrar na mais conhecida história do mundo cristão
e ousar recriá-la como se usasse as mesmas notas, mas produzisse uma música diferente,
com laivos enevoados da original.
Maria tem vários filhos, todos fruto de actos carnais, sendo
Jesus o mais velho de todos. Todas as figuras têm virtudes, mas têm também as
suas falhas. Jesus é pouco mais do que um adolescente tradicional quando se
rebela contra os seus pais, afastando-nos da mente a figura piedosa idealizada,
incapaz de perdoar ao pai morto uma falha e acusando a mãe de conivência,
deixando-a à sua sorte com vários filhos para criar. Mas também Maria errará quando Jesus voltar para lhe revelar a sua ligação com Deus, não acreditando nele, que contará com maior apoio de estranhos do que da sua própria família,
Jesus é a cada pulsar um homem, não uma figura seráfica,
capaz por vezes de grandes actos, como a recusa em sacrificar o cordeiro, mas
que não renega os seus impulsos, mesmo os carnais. A relação entre Jesus e
Maria de Magdala é um amor plenamente vivido e celebrado fisicamente e é a
relação de maior transcendência e pureza do livro, havendo uma ligação espiritual
entre os dois que faz com que Jesus esteja disposto a tudo enfrentar por ela, e
ela a tudo abandonar por ele. É o Jesus compreensivo e que ama o próximo que não condena Maria da Magdala pelo seu passado e que a trata com um respeito proporcional à devoção que ela lhe vota.
Mas de nada serve a Jesus ter vontade porque no fim não terá
como escapar aos ambiciosos planos de Deus, disposto a tudo para alargar a sua
influência. Para Deus tudo não passa de um jogo
de xadrez e Jesus é uma peça que ilusoriamente pensa poder escusar-se a fazer parte do
jogo. Num acto de desespero, tentando corrigir o que se adivinha inadiável, Jesus acredita que se puder morrer como aspirante a Rei
dos Judeus e não como filho de Deus a sua morte não servirá os planos divinos.
Mas não tardará muito a perceber que tudo o
que fizesse o levaria àquela cruz, cruelmente privado por Deus da sua vontade,
como nos séculos vindouros o será por multidões fanáticas que cumprirão as
imagens que lhe foram reveladas quando foi convidado a juntar-se a esta empresa pela glória terrestre.
“O Evangelho Segundo Jesus Cristo” é um acontecimento
literário por direito próprio, um livro que será lido por anos e anos, sem perder a sua pertinência. A voz de Saramago eleva-se e adquire
proporções mitológicas, como se um eco profético se apoderasse do leitor.
Saramago reconta-nos uma história, mas acima de tudo dá-nos uma lição e pobres daqueles que não a conseguirem perceber. Um livro acima do céu e da terra.
Classificação: 20/20
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