“Muito cedo na minha vida foi tarde de mais. Aos dezoito anos era já tarde de mais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa direcção imprevista. Aos dezoito anos envelheci.” (in "O Amante" de Marguerite Duras, ASA, Colecção Vintage, p.7 e 8)
No
Mékong. Numa barcaça sobre o Mékong. Uma jovem de aspecto peculiar, com um
estranho chapéu de abas de homem, atravessa o rio. Debruça-se da barcaça,
olhando sem destino, como quem nada procura, nada espera, mas mesmo assim
olha. Naquela barcaça, naquela viagem, encontrará aquilo que nem sabia desejar.
De uma grande carro preto sai um chinês, mais velho do que ela, de aspecto
frágil, apesar dos sinais óbvios de riqueza. Nada de comum entre os dois.
Excepto aquele momento. Aquele lugar. O rumar à deriva para um destino incerto,
com o conformismo de quem não sabe o que quer porque nunca sabia que isso era
possível. Que era possível querer algo e escolher um caminho.
Assim
começa a história de amor que marcaria a vida de Marguerite Duras, sem
romantismo, sem exacerbadas declarações mútuas de amor, sem esperança. A jovem
que atravessa o Mékong e o chinês rico amam-se na sua destruição, na ausência
de um futuro possível para os dois. Porque o pai dele não permitiria que o
filho se casasse com uma branca, e porque ela é incapaz de amar ou, pelo menos
de reconhecer o amor. Tão submersa que está na história da sua mãe, que não
consegue acreditar, não consegue ver uma vida para além da desilusão e das fatalidades incontroláveis que assolam o destino. A imagem do Pacífico a
reclamar as terras da propriedade comprada pela sua mãe com o último dinheiro
da família, após a morte do pai, galgando a barragem teimosamente erigida,
contém em si uma beleza cruel e um simbolismo avassalador. Não vale a pena
lutar.
Na verdade
“O Amante” é tanto a história de um amor quanto é a história de uma família.
Para percebermos a relação da menina de 15 anos com o seu amante chinês é
necessário conhecer a sua mãe, a loucura da sua mãe, e os irmãos, um forte e
assassino, o outro fraco e revoltado. Há entre os três irmãos e a mãe um laço
emocional de uma grande profundidade e a convivência com a mãe enganada e indefesa
inscreve em cada um deles uma ferida que nunca sarará e que determinará as suas acções. Perante o desespero da mãe, sem recursos e sem
força para lutar, a filha vê naquele chinês, antes de mais, uma forma de
subsistência. Mas o lado utilitário daquela relação depressa cede perante o
peso dos sentimentos criados, sem que haja uma consciência profunda do que
significam.
O lado
mais perverso da falta de esperança é incapacitar-nos de ver o real valor das
coisas, de percebermos que vale a pena lutarmos por algo, o fazer-nos duvidar
daquilo que sentimos. Não pode ser! Como podemos amar, se sabemos que tudo estará
destinado a um final abrupto, a uma tristeza que apagará tudo? E é quando tudo
se perde, quando o destino é selado, que uma visão nítida se impõe sobre o
horizonte, de uma clareza dolorosa, de uma certeza cruel. Como se pode abrir
mão de tudo sem sequer lutar?
Duras
escreve ao sabor das memórias, que se aproximam, primeiro cobertas por uma
névoa, mas que aos poucos vão ganhando contornos definidos e que, de forma algo
aleatória, abrem caminho a novas imagens vividas. E assim, com a mesma
serenidade conformada com que começa a história, Duras termina-a:
“O grande
automóvel dele estava lá, comprido e negro, no banco da frente o motorista
fardado de branco. Estava um pouco afastado do parque para automóveis da
Companhia Marítima, isolado. Ela tinha-o reconhecido por esses sinais. Era ele
na parte de trás, essa forma quase invisível, que não fazia qualquer movimento,
abatido. Ela estava encostada à amurada como da primeira vez na barcaça. Sabia
que ele olhava para ela. Ela também o olhava, já não o via mas ainda olhava
para a forma do automóvel preto. E depois, por fim, tinha deixado de o ver. O
porto apagara-se, e depois a terra.” (in "O Amante" de Marguerite Duras, ASA, Colecção Vintage, p.120 e 121)
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