A força
incontrolável do mar e do destino. Por muito que nos enganemos, que nos
tentemos convencer de que os controlamos, no final reconheceremos a sua
supremacia. Por muito que desejemos que o mundo pare, que um momento se
cristalize no tempo e se converta em infinito, a mudança virá e, como uma
torrente de água, levará consigo tudo o que encontrar à sua frente. Assim
acontece com a família de “Uma Barragem Contra o Pacífico”, uma obra-prima por
direito próprio, que apenas não é a grande obra de Marguerite Duras porque muitos anos mais tarde “O Amante” seria escrito, e o que poderia haver de
imperfeição no primeiro livro foi obliterado pela pureza aprimorada do segundo.
O ponto
de partida para ambas as histórias é o mesmo: uma viúva com filhos para criar
decide investir as suas economias numa concessão atribuída pelo governo da
Indochina, com a esperança de que a exploração dessa terra seja a solução para
os seus problemas financeiros e uma porta para a riqueza. O pior acontece
quando percebe ter sido enganada, assistindo indefesa às terras da sua concessão serem
dragadas pelas águas do Pacífico durante grande parte do ano, impossibilitando
o seu cultivo. Numa tentativa desesperada, manda erguer uma espécie de barragem para conter as águas do mar, sem que o seu propósito seja alcançado.
Vê-se então sozinha em plena selva da Indochina, com os seus filhos e sem forma
de subsistir, condenada a uma vida de miséria
A irmã, o
irmão e a mãe de “Uma Barragem Contra o Pacífico” conhecerão portanto uma nova
existência em “O Amante”, mas com algumas diferenças. Nesta primeira história a
rapariga, Suzanne, uma personificação de Duras enquanto jovem na Indochina, é
menos melancólica e ensimesmada, assim como o irmão é também mais vivaz. A mãe
permanece inalterável. Mas fora deste núcleo familiar, há diferenças
consideráveis nas duas histórias: em “Uma Barragem Contra o Pacífico” não há
irmão mais velho, o irmão cruel que absorverá todo o amor da mãe, e também não
há sentimentos genuínos pelo amante. O Sr. Jo, o rico pretendente deste livro,
está muito distante da figura sedutora e intensa de “O Amante”, uma figura
capaz de fazer uma jovem desesperada sentir amor. O Sr. Jo resume-se ao
ridículo e à perversidade, numa existência plena de humilhação e cobardia.
Enquanto
em “O Amante” há uma dinâmica entre forças endógenas e exógenas à família, em
“Uma Barragem Contra o Pacífico” tudo é a família e, mais que isso, tudo é a
mãe, essa mulher louca, tão profundamente destruída pela vida que, começando
por ser uma heroína estóica, se torna numa mulher dominada pela injustiça e
pela incapacidade de fazer algo, numa mulher que nada mais tem do que os seus
dois filhos. E o amor que os une, embora seja um sentimento sobretudo
destrutivo (mas o amor em Duras é sempre uma força destruidora), é o ponto
criador de equilíbrio e que permite à família sobreviver a tudo. A partida de
Joseph, o irmão, há tanto antevista e temida pela mãe, terá por isso uma
importância tão significativa, acabando por ser o início do fim e um mero prelúdio
do inadiável desfecho da história.
O desejo
incestuoso da Suzanne pelo seu irmão, embora nunca seja afirmado de forma
peremptória, é neste livro mais presente. No final é por ele que ela espera
junto à estrada, em frente da casa, embora queira fazer crer que aguarda por um
homem que a leve dali e ao qual se renderia de imediato porque sabe que não é
mais do que uma mercadoria sem outra utilidade que garantir o salvamento
económico da família.
Suzanne e
a mãe desejam, acima de tudo, que o tempo pare e que possam viver eternamente
naquele bungalow, construído junto à sua estéril concessão, com Joseph. Os três
alimentando um ódio silencioso, estridente aquando dos ataques da mãe, contra as
autoridades coloniais que os enganaram, contra os homens ricos que cobiçarão
Suzanne e que pensarão que a poderão comprar com o seu dinheiro. Mas esse tempo
acabará, sem que nenhuma barragem o consiga evitar, porque no fim apenas haverá
a solidão e a certeza de que o destino, como a água do mar, seguirá o seu rumo.
“Uma
Barragem Contra o Pacífico” apresenta-nos uma Duras disciplinada, seguindo
um modelo mais tradicional de romance, num estilo que, possuindo já os motivos
que caracterizariam toda a sua obra, não se encontrava ainda completamente
formado. Mas a capacidade de evocar imagens poéticas e de chocar pela
profundidade honesta dos sentimentos revela uma escritora com uma capacidade
única: a de criar uma história que nos incomoda, nos faz sair do nosso centro e
que gera entre nós e as personagens, mesmo aquelas que não nos são muito
simpáticas, um elo de compreensão. Um romance maior do séc. XX.
Classificação:
19/20
Sem comentários:
Enviar um comentário