“(…) beijaram-se e morderam-se ligeiramente porque as suas bocas não se reconheciam, beijavam bocas diferentes, procurando-se com as mãos numa teia infernal de cabelo suspenso.”
Julio Cortázar in “O Jogo do Mundo (Rayuela)”
Lemos livros. Muitos livros. De alguns só nos lembramos do
título. De outros lembramo-nos como se os tivéssemos acabado de ler. Muitas
vezes esquecemo-nos de quando os lemos, dos caminhos que percorremos com eles
nas mãos, do ponto em que nos encontrávamos nas nossas vidas quando abrimos as suas primeiras páginas. Mas nunca
poderemos esquecer os dias vividos ao lado de “O Jogo do Mundo (Rayuela)”,
editado em Portugal pela Cavalo de Ferro, da descoberta de uma nova forma de
ler, diferente de tudo, percorrendo um caminho projectado por Julio Cortázar
sem que ele próprio soubesse ao certo a que destino nos faria chegar.
No começo do livro há uma pequena nota, com o título “Tábua
de Orientação” e é aqui que Cortázar nos informa que o livro que vamos ler será
construído por nós. Estamos numa bifurcação e dois caminhos apresentam-se
perante nós: podemos ler os primeiros 56 capítulos do livro pela ordem
apresentada e esquecermos os restantes 99 que Cortázar apelida de “Capítulos
Prescindíveis” ou, em alternativa, propõe-nos seguir uma tabela idealizada por
ele, em que o livro começa no capítulo 73 e termina no 151, sendo apresentado no
final de cada capítulo aquele que deverá ser lido em seguida. Como resistir a
uma proposta tão tentadora, à estranheza de ler um livro por uma ordem
aparentemente desordenada? Sem pensar duas vezes, abri o livro no capítulo 73 e
entrei no labirinto.
Na verdade a proposta de Cortázar não é totalmente caótica e
aleatória, o que a sua tabela propõe é manter a sequência dos 56 capítulos
principais, colocando entre eles os capítulos dispensáveis, que vão concedendo
novas luzes interpretativas para o núcleo da história.
No início encontraremos Oliveira em Paris, entretido com
Maga e um grupo de amigos intelectuais. Mais tarde Oliveira estará em Buenos
Aires e apenas Talita e Traveler lhe restarão. Mas falemos de Maga, a mulher
que causou em Oliveira uma impressão tão profunda. Maga era um elemento
deslocado naquele grupo, não lhe permitindo a sua cultura acompanhar as muitas
referências atiradas entre amigos, embora demonstre interesse por conhecer
tudo e perceber aquilo de que se falava. Mas se Maga desejava ter a cultura de
Oliveira, este inveja-lhe a capacidade de sentir. Maga experiencia o mundo sem
reservas, rendendo-se espontaneamente ao legado dos sentidos, enquanto Oliveira
procura perceber o sentido de tudo, um sentido que compreende transcender a
razão, mas que ele procura racionalizando. Maga vive. Oliveira pensa.
Os impressionantes acontecimentos que levam à dissolução do
grupo e à partida de Oliveira para Buenos Aires são uma procura desesperada
pela capacidade de sentir. Oliveira atira-se contra tudo na esperança de
derrubar a muralha que se construiu entre ele o mundo e que, nesse processo, o
absurdo da existência se lhe revele. E por isso regresse a Buenos Aires, a sua
casa, à procura de algo indefinível, junto de Talita e de Traveler.
Nos capítulos dispensáveis Cortázar fala-nos do escritor
Morelli e deparamo-nos com o seu projecto de criar um livro de ordem variável, e é como
se de repente o livro entrasse dentro do livro, e os limites entre realidade e ficção
estivessem em causa, prática comum em Cortázar. Morelli dá-nos luzes sobre o
próprio livro que Cortázar escreve. Diz-nos que procura no livro uma espécie de
resposta energética, não narrativa, mas enunciada de forma narrativa.
Suficientemente claro? Talvez não, mas talvez o que o enunciado pretenda é
transmitir de forma narrativa a dimensão de absurdo de que Oliveira falava e
que se encontra para lá da razão, numa espécie de impulso primitivo. Impulso
primitivo que também se encontra no sexo entre Oliveira e Maga. Procuraria
Oliveira nesse momento uma espécie de iluminação?
Uma pérola escondida nos capítulos dispensáveis é Ceferino e
a sua proposta para a organização do mundo em categorias estanques, uma
hilariante passagem que quem se limitar ao essencial perderá. Mas a teoria de
Ceferino não é apenas um instrumento de diversão, conservando em si uma questão
profunda sobre as convenções. Não serão todas as tentativas de categorização,
todos os processos de profunda racionalização ridículos por definição? Haverá
assim tanta diferença entre as propostas de Ceferino e as catalogações aceites
pela sociedade? Mais uma vez, Cortázar não nos dá respostas.
E também no final não nos responde. Alude-se a uma cegueira,
mas será pior a cegueira de quem vive ou a visão de quem procura as grandes
respostas? A cegueira é um mal ou é uma bênção? O livro termina num movimento
circular, como uma fita áudio que chegou ao fim e roda infinitamente sobre si
mesma. Uma alegoria da vida?
O que tem “O Jogo do Mundo (Rayuela)” de especial? Cabe-vos
a vós, a cada um dos leitores descobrir, encontrar as vossas perguntas e as
vossas respostas no elaborado labirinto criado por Cortázar. Um labirinto que
não é um mero exercício intelectual, mas o colocar numa forma a questão
fundamental, a do sentido de tudo. Se é que esse sentido existe.
Classificação: 19/20
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