terça-feira, 26 de agosto de 2014

Em estado crítico: “O Jogo do Mundo (Rayuela)” de Julio Cortázar

“(…) beijaram-se e morderam-se ligeiramente porque as suas bocas não se reconheciam, beijavam bocas diferentes, procurando-se com as mãos numa teia infernal de cabelo suspenso.”

Julio Cortázar in “O Jogo do Mundo (Rayuela)”


Lemos livros. Muitos livros. De alguns só nos lembramos do título. De outros lembramo-nos como se os tivéssemos acabado de ler. Muitas vezes esquecemo-nos de quando os lemos, dos caminhos que percorremos com eles nas mãos, do ponto em que nos encontrávamos nas nossas vidas quando abrimos as suas primeiras páginas. Mas nunca poderemos esquecer os dias vividos ao lado de “O Jogo do Mundo (Rayuela)”, editado em Portugal pela Cavalo de Ferro, da descoberta de uma nova forma de ler, diferente de tudo, percorrendo um caminho projectado por Julio Cortázar sem que ele próprio soubesse ao certo a que destino nos faria chegar.

No começo do livro há uma pequena nota, com o título “Tábua de Orientação” e é aqui que Cortázar nos informa que o livro que vamos ler será construído por nós. Estamos numa bifurcação e dois caminhos apresentam-se perante nós: podemos ler os primeiros 56 capítulos do livro pela ordem apresentada e esquecermos os restantes 99 que Cortázar apelida de “Capítulos Prescindíveis” ou, em alternativa, propõe-nos seguir uma tabela idealizada por ele, em que o livro começa no capítulo 73 e termina no 151, sendo apresentado no final de cada capítulo aquele que deverá ser lido em seguida. Como resistir a uma proposta tão tentadora, à estranheza de ler um livro por uma ordem aparentemente desordenada? Sem pensar duas vezes, abri o livro no capítulo 73 e entrei no labirinto.

Na verdade a proposta de Cortázar não é totalmente caótica e aleatória, o que a sua tabela propõe é manter a sequência dos 56 capítulos principais, colocando entre eles os capítulos dispensáveis, que vão concedendo novas luzes interpretativas para o núcleo da história.

No início encontraremos Oliveira em Paris, entretido com Maga e um grupo de amigos intelectuais. Mais tarde Oliveira estará em Buenos Aires e apenas Talita e Traveler lhe restarão. Mas falemos de Maga, a mulher que causou em Oliveira uma impressão tão profunda. Maga era um elemento deslocado naquele grupo, não lhe permitindo a sua cultura acompanhar as muitas referências atiradas entre amigos, embora demonstre interesse por conhecer tudo e perceber aquilo de que se falava. Mas se Maga desejava ter a cultura de Oliveira, este inveja-lhe a capacidade de sentir. Maga experiencia o mundo sem reservas, rendendo-se espontaneamente ao legado dos sentidos, enquanto Oliveira procura perceber o sentido de tudo, um sentido que compreende transcender a razão, mas que ele procura racionalizando. Maga vive. Oliveira pensa.

Os impressionantes acontecimentos que levam à dissolução do grupo e à partida de Oliveira para Buenos Aires são uma procura desesperada pela capacidade de sentir. Oliveira atira-se contra tudo na esperança de derrubar a muralha que se construiu entre ele o mundo e que, nesse processo, o absurdo da existência se lhe revele. E por isso regresse a Buenos Aires, a sua casa, à procura de algo indefinível, junto de Talita e de Traveler.

Nos capítulos dispensáveis Cortázar fala-nos do escritor Morelli e deparamo-nos com o seu projecto de criar um livro de ordem variável, e é como se de repente o livro entrasse dentro do livro, e os limites entre realidade e ficção estivessem em causa, prática comum em Cortázar. Morelli dá-nos luzes sobre o próprio livro que Cortázar escreve. Diz-nos que procura no livro uma espécie de resposta energética, não narrativa, mas enunciada de forma narrativa. Suficientemente claro? Talvez não, mas talvez o que o enunciado pretenda é transmitir de forma narrativa a dimensão de absurdo de que Oliveira falava e que se encontra para lá da razão, numa espécie de impulso primitivo. Impulso primitivo que também se encontra no sexo entre Oliveira e Maga. Procuraria Oliveira nesse momento uma espécie de iluminação?

Uma pérola escondida nos capítulos dispensáveis é Ceferino e a sua proposta para a organização do mundo em categorias estanques, uma hilariante passagem que quem se limitar ao essencial perderá. Mas a teoria de Ceferino não é apenas um instrumento de diversão, conservando em si uma questão profunda sobre as convenções. Não serão todas as tentativas de categorização, todos os processos de profunda racionalização ridículos por definição? Haverá assim tanta diferença entre as propostas de Ceferino e as catalogações aceites pela sociedade? Mais uma vez, Cortázar não nos dá respostas.

E também no final não nos responde. Alude-se a uma cegueira, mas será pior a cegueira de quem vive ou a visão de quem procura as grandes respostas? A cegueira é um mal ou é uma bênção? O livro termina num movimento circular, como uma fita áudio que chegou ao fim e roda infinitamente sobre si mesma. Uma alegoria da vida?

O que tem “O Jogo do Mundo (Rayuela)” de especial? Cabe-vos a vós, a cada um dos leitores descobrir, encontrar as vossas perguntas e as vossas respostas no elaborado labirinto criado por Cortázar. Um labirinto que não é um mero exercício intelectual, mas o colocar numa forma a questão fundamental, a do sentido de tudo. Se é que esse sentido existe.


Classificação: 19/20

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