«Não resistimos a revolver deste modo o passado e peneiramos
factos indignos de crédito, juntamos nomes dispersos a datas e historietas dúbias,
agarramo-nos a fios, insistindo em unirmo-nos aos mortos e, como tal, à vida.»
Alice Munro em “A Vista de Castle Rock”
Há quem escreva sobre guerras, revoluções e amores épicos,
emanando o dialecto do extraordinário. Frases pomposas, palavras grandiosas,
personagens quase divinas, maiores que a vida, porque a vida é sempre menor que
aqueles que a vivem. Alice Munro não é esse tipo de escritora. É no banal, nos pequenos momentos do
quotidiano, na passagem lenta das horas, que Munro vive a sua escrita, elevando
o mundano a extraordinário.
As suas personagens têm carne e sangue, e alimentam-se, e bebem
água, olham o horizonte a pensar no futuro, deitam-se ao luar a recordar o
passado. Vivem frustrações, vivem amores, vivem os dias. Vivem. Não são
heroínas românticas, nem homens notáveis. São pessoas que vivem. Como nós.
Eu e Munro
Alice entrou na minha vida por acaso, como normalmente o faz
quem nos é mais querido. Foi pela mão de uma das minha melhores amigas, que um
dia, há 2 anos, me decidiu surpreender com o “A Vista de Castle Rock”, editado
em Portugal pela Relógio d’Água. A escolha do livro foi bastante aleatória:
tinha ouvido falar de Munro por alto, encontrou o livro numa promoção da Bertrand,
leu a contracapa e achou que era um livro para mim. A escolha não poderia ter
sido mais acertada e, se não estivéssemos já suficientemente ligados um ao outro,
este livro cimentaria o que já era duro como rocha.
Comecei o livro a medo. Munro era até então uma incógnita
para mim e o conto não era um género que me dissesse muito. E este é de facto o
livro ideal para leitores com reticiências em relação a contos, porque há nele uma
unidade que extravasa a natureza fragmentada que este tipo de livros por norma
tem. Alice Munro conta-nos em 11 momentos a história da sua família, desde a
partida da Escócia em busca de uma nova vida num novo continente, até à sua
própria existência, num registo quase biográfico, mas sem os condicionantes do rigor
factual.
Na parte final do livro, em que a Munro ficcionada, tão
verdadeira quanto a Munro real, parte à descoberta das campas dos antepassados
que invocou na 1ª parte do livro, viajando por caminhos desertos, vagueando por
cemitérios abandonados, algo de inexplicável acontece. As folhas do livro
desaparecem, a capa desintegra-se e, hipnotizados pelas palavras escritas,
sentimos Munro ao nosso lado, partilhamos com ela um estado de consciência, num
reconhecimento profundo da solidão e do desamparo. Tudo acabará ali. Também ela
será um dia pó debaixo de terra, sob lápides partidas esquecidas no tempo. A
única vez que senti algo semelhante foi com “Todo-o-Mundo” de Philip Roth,
também no final do livro, quando o personagem principal visita a campa dos seus
pais, mortos há já algum tempo. Há um sofrimento sóbrio no luto de mortes
distantes, que simboliza com uma perfeição avassaladora a perda, porque apenas
o tempo lhe confere a sua verdadeira dimensão.
Desde então que Munro faz parte do meu Olimpo de escritores,
e nestes 2 anos comprei “O Amor de uma Boa Mulher” e “Fugas”, também da Relógio
d’Água (como o são todos os livros da autora editados em Portugal). Por força da
quantidade astronómica de livros que tenho por ler (a vontade de ler, como
tradicionalmente, supera em muito o tempo para o fazer), ainda não os li, mas vou passá-los à frente. “Amada Vida”, o seu último livro e
considerado por muitos como o melhor, será a minha próxima compra, com a
promessa de uma leitura para breve. Aguardem por novidades nos próximos meses…
O que autores conceituados dizem de Munro
«As pessoas falam de Munro como uma “mestre do conto”. Mas
mais do que uma mestre no género, Munro recriou-o. As suas histórias
aparentemente tradicionais são tudo menos isso. Munro alterna entre múltiplos
pontos de vista e planos temporais – coisas suficientemente complexas para
nos deixarem de cabelos em pé – não para se exibir, mas para encontrar uma forma de
conceder às suas histórias o máximo de densidade. É a escritora mais selvagem
que alguma vez li, mas também a mais terna, a mais honesta, a mais perceptiva.
Este é um daqueles anos em que ninguém se pode queixar da escolha do Comité do
Nobel.»
Jeffrey Eugenides, vencedor do Pulitzer,
autor de “Middlesex”
e de “As Virgens Suicidas”
«Ler Munro deixa-me num estado de reflexão calma, no qual penso
na minha própria vida: nas decisões que tomei, nas coisas que fiz e não
fiz, no tipo de pessoa que sou, na perspectiva da morte. Munro encontra-se num
grupo restrito de autores, alguns vivos, a maioria mortos, que me vêm à cabeça
quando digo que a ficção é a minha religião.”
Jonathan Franzen, vencedor do National Book Award,
autor de “Correcções” e “Liberdade”
(tradução e adaptação de testemunhos publicados pelo
Washington Post)
«Alice Munro está entre os maiores escritores de ficção em
inglês dos nossos tempos. A crítica americana e britânica tem-lhe atribuído
mãos-cheias de elogios, tem recebido muitos prémios, e tem leitores
internacionais devotos. Entre escritores, o seu nome é sussurrado. Ela é o tipo
de escritor do qual se diz habitualmente – independentemente do quão conhecida
ela se tornar – que tem de ser melhor conhecida.»
Margaret Atwood, vencedora do The Man Booker Prize,
autora
de “O Assassino Cego” e”A História de uma Serva”
(excerto de um artigo publicado pelo The Guardian)
Livros de Alice Munro publicados em Portugal
Num artigo anterior, apresentei a lista de obras de Munro
publicadas em Portugal (todas pela Relógio d’Água). Mas, porque sei que haverá
muito apetite pelos livros da autora nos próximos tempos, aqui a têm novamente:
Eu também considerava o conto um estilo literário menor mas curei-me desse preconceito com Flannery O'Connor e o magnífico "Um Bom Homem é Difícil de Encontrar". Tenho Lydia Davis em lista de espera, já tive Tchékhov nas mãos mas na altura não tive disponibilidade para o ler. Espero ter o privilégio de em breve sentir o pulsar da descrita de Alice Munro, afinal de contas não é todos os anos que o Nobel da Literatura premeia um autor inteligível.
ResponderEliminarAqui está uma boa notícia que queria partilhar contigo e com quem gosta de livros. É necessário novos projectos para revitalizar a indústria do livro e este parece-me um deles. O espaço parece ser simpático.
https://www.facebook.com/fyodorbooks
Obrigado pela sugestão! Parece de facto um projecto muito interessante. Vou passar por lá nas próximas semanas.
EliminarQuanto aos contos, não os considerava um género menor, simplesmente nunca tinha lido nada que me tivesse causado um grande impacto. Para mim o ponto de viragem foi a Alice Munro, e a Granta deu sem dúvida o impulso final que necessitava.
Já me falaram bem da Flannery O'Connor, mas é por enquanto uma das grandes falhas na minha biblioteca. Tenho de resolver esta lacuna. A Lydia Davis é também uma das minhas próximas leituras (mas o registo parece-me muito diferente do de Munro, mais virado para o microconto, o que me deixa algo apreensivo - preciso de algumas páginas para me conseguir relacionar com uma história…), assim como o “Nove Contos” do Salinger, que me foi altamente recomendado.
Mal posso esperar para ler. beijo e obrigada.
ResponderEliminarNão te vais arrepender. Estou quase a terminar o "Fugas" e, mais uma vez, estou maravilhado. Nos próximos dias publico a crítica. Beijinhos
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