Saramago merece que respeitemos a sua obra. Mas, ao
contrário do que muitos pensam, respeitar a obra de um grande autor não é
elogiá-la ou adoptar uma postura devota. Respeitar um autor é lê-lo,
criticamente, sem condescendências, e partir dessa base para uma análise fundamentada. Infelizmente parece-me que não foi esse o
tratamento dado a “Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas”, o livro
inacabado em que Saramago trabalhava quando morreu.
Pouco depois de o livro ter sido publicado pela Porto Editora formaram-se duas
correntes antagónicas, mas igualmente perversas. De um lado os detractores de
Saramago e os que não se deram ao trabalho de ler o livro, preferindo
apelidá-lo de engodo meramente com base em questões de formato. Só três capítulos? Com
letra enorme, ainda por cima? Para quê os destaques a vermelho no texto, que se
intrometem na experiência do leitor? Para quê as ilustrações? Os textos do
Fernando Gómez Aguilera e do Roberto Saviano são só para encher? E em
todas estas questões, que na altura foram feitas, de tudo se falou menos do
conteúdo do texto.
Do outro lado os fãs incondicionais de Saramago, que
irresponsavelmente se apressaram a considerar “Alabardas” um exemplo de Saramago
no seu melhor, havendo mesmo quem o classificasse como um dos melhores livros do
ano. Rapidamente surgiram pontes que ligaram as personagens de “Alabardas” às
figuras de proa da mitologia Saramagiana, sem perceberem que o principal prejudicado
é Saramago, que colocar “Alabardas” ao nível dos seus melhores livros é colocar
em causa a qualidade de uma obra tão arduamente construída.
Como de costume, é no meio que está a virtude, e é algures
no meio que me encontro. A componente estética do livro não me incomoda. É um
livro de homenagem, parece-me normal e até interessante esta tentativa de repensar
o grafismo. E por princípio as ilustrações e os textos extra não violam
a minha consciência de leitor. Mas na prática desiludiu-me o carácter algo
aleatório das ilustrações, cuja ligação ao texto me pareceu bastante forçada. E
mais me desiludiram os textos de Aguilera e de Saviano. O primeiro por repetir
ipsis verbis as notas deixadas por Saramago que são apresentadas nas páginas
anteriores. Para quê repetir algo que se acabou de ler? E Aguilera não resiste
a comparar Felícia, a mulher do protagonista, a Blimunda, o que eu
classificaria como um acto criminoso. O texto de Saviano é mais interessante,
mas também não se coíbe de elevar Artur Paz Semedo a um estatuto que o pouco
que Saramago escreveu não nos permite considerar razoável.
Mas o problema de base é que “Alabardas” não é um livro, é
um projecto, e é dessa forma que deveria ser tratado. Nos três breves capítulos, Saramago tem tempo para pouco mais do que posicionar as peças no tabuleiro,
criando os primeiros alicerces da narrativa. Tentar deste esqueleto inferir significados
é um exercício especulativo. A ideia base de Saramago é muito interessante,
explorar o porquê de nunca ter havido uma greve na indústria do armamento, mas
não é claro de que forma pretendia analisar a questão. O que chegou até nós é um homem curioso, que se propõe investigar qual o posicionamento da
fábrica em que trabalha nos principais conflitos armados do século XX. Apenas
isto. Uma visão desapaixonada e sem uma moral última, que viria a ter
certamente, mas que não houve tempo de construir.
A sensação de falta de tempo é aliás algo que transparece
muito na escrita. Saramago que costuma respirar pausadamente, caminhando num
passo firme e sereno, com uma noção de ritmo e uma gestão da narrativa
irrepreensível, é em “Alabardas” um escritor apressado, que cavalga de frase
em frase, com reminiscências do seu estilo oracular, mas com passagens abruptas
e muitas palavras que ficam por dizer.
E chegamos ao momento em que a pergunta se impõe: “Alabardas”
deveria ter sido publicado? Todos conhecem as minhas reservas quanto a obras póstumas e, se me coubesse a decisão, possivelmente não o teria feito. Mas
percebo as motivações dos herdeiros que quiseram trazer à luz do dia uma obra
que Saramago temia nunca chegar aos leitores, especialmente pelo debate que
poderia promover. Proporcionar uma discussão alargada sobre a temática da
guerra é uma boa e merecida homenagem a Saramago, e por isso acho que a
publicação valeu a pena.
Não li o livro, mas concordo consigo que gostar de um escritor não é mesmo que ser um fã incondicional sempre disponível ao elogio.
ResponderEliminarLi muitas obras de Saramago, umas gostei mais, outras nem por isso, neste último grupo nem todas são consideradas obras menores, mas confesso que a partir de certa altura sentia-me que pareciam variações sobre um mesmo tema, como aqueles músicos que repetem à exaustão a fórmula que lhes deu sucesso e então fiz uma pausa. Depois já li outros romances distantes no tempo e voltei a deliciar-me.
Não tenho sentido isso em relação ao Saramago, não me pareceu até ao momento um autor repetitivo. A minha única má experiência com ele foi com “O Ano da Morte de Ricardo Reis” que não me cativou muito, mas talvez o tenha lido muito cedo.
ResponderEliminarGostar de um escritor, e eu gosto muito Saramago, para mim tem de implicar ser exigente, e parece-me que as opiniões sobre este livro se dividiram muito entre críticas e elogios gratuitos, infelizmente.