terça-feira, 17 de março de 2015

Ler o último livro de Saramago


Saramago merece que respeitemos a sua obra. Mas, ao contrário do que muitos pensam, respeitar a obra de um grande autor não é elogiá-la ou adoptar uma postura devota. Respeitar um autor é lê-lo, criticamente, sem condescendências, e partir dessa base para uma análise fundamentada. Infelizmente parece-me que não foi esse o tratamento dado a “Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas”, o livro inacabado em que Saramago trabalhava quando morreu.

Pouco depois de o livro ter sido publicado pela Porto Editora formaram-se duas correntes antagónicas, mas igualmente perversas. De um lado os detractores de Saramago e os que não se deram ao trabalho de ler o livro, preferindo apelidá-lo de engodo meramente com base em questões de formato. Só três capítulos? Com letra enorme, ainda por cima? Para quê os destaques a vermelho no texto, que se intrometem na experiência do leitor? Para quê as ilustrações? Os textos do Fernando Gómez Aguilera e do Roberto Saviano são só para encher? E em todas estas questões, que na altura foram feitas, de tudo se falou menos do conteúdo do texto.

Do outro lado os fãs incondicionais de Saramago, que irresponsavelmente se apressaram a considerar “Alabardas” um exemplo de Saramago no seu melhor, havendo mesmo quem o classificasse como um dos melhores livros do ano. Rapidamente surgiram pontes que ligaram as personagens de “Alabardas” às figuras de proa da mitologia Saramagiana, sem perceberem que o principal prejudicado é Saramago, que colocar “Alabardas” ao nível dos seus melhores livros é colocar em causa a qualidade de uma obra tão arduamente construída.

Como de costume, é no meio que está a virtude, e é algures no meio que me encontro. A componente estética do livro não me incomoda. É um livro de homenagem, parece-me normal e até interessante esta tentativa de repensar o grafismo. E por princípio as ilustrações e os textos extra não violam a minha consciência de leitor. Mas na prática desiludiu-me o carácter algo aleatório das ilustrações, cuja ligação ao texto me pareceu bastante forçada. E mais me desiludiram os textos de Aguilera e de Saviano. O primeiro por repetir ipsis verbis as notas deixadas por Saramago que são apresentadas nas páginas anteriores. Para quê repetir algo que se acabou de ler? E Aguilera não resiste a comparar Felícia, a mulher do protagonista, a Blimunda, o que eu classificaria como um acto criminoso. O texto de Saviano é mais interessante, mas também não se coíbe de elevar Artur Paz Semedo a um estatuto que o pouco que Saramago escreveu não nos permite considerar razoável.

Mas o problema de base é que “Alabardas” não é um livro, é um projecto, e é dessa forma que deveria ser tratado. Nos três breves capítulos, Saramago tem tempo para pouco mais do que posicionar as peças no tabuleiro, criando os primeiros alicerces da narrativa. Tentar deste esqueleto inferir significados é um exercício especulativo. A ideia base de Saramago é muito interessante, explorar o porquê de nunca ter havido uma greve na indústria do armamento, mas não é claro de que forma pretendia analisar a questão. O que chegou até nós é um homem curioso, que se propõe investigar qual o posicionamento da fábrica em que trabalha nos principais conflitos armados do século XX. Apenas isto. Uma visão desapaixonada e sem uma moral última, que viria a ter certamente, mas que não houve tempo de construir.

A sensação de falta de tempo é aliás algo que transparece muito na escrita. Saramago que costuma respirar pausadamente, caminhando num passo firme e sereno, com uma noção de ritmo e uma gestão da narrativa irrepreensível, é em “Alabardas” um escritor apressado, que cavalga de frase em frase, com reminiscências do seu estilo oracular, mas com passagens abruptas e muitas palavras que ficam por dizer.

E chegamos ao momento em que a pergunta se impõe: “Alabardas” deveria ter sido publicado? Todos conhecem as minhas reservas quanto a obras póstumas e, se me coubesse a decisão, possivelmente não o teria feito. Mas percebo as motivações dos herdeiros que quiseram trazer à luz do dia uma obra que Saramago temia nunca chegar aos leitores, especialmente pelo debate que poderia promover. Proporcionar uma discussão alargada sobre a temática da guerra é uma boa e merecida homenagem a Saramago, e por isso acho que a publicação valeu a pena.

“Alabardas” não é Saramago no seu melhor. Mas um Saramago fora de forma ainda consegue valer mais do que muitos escritores no auge da sua pujança.

2 comentários:

  1. Não li o livro, mas concordo consigo que gostar de um escritor não é mesmo que ser um fã incondicional sempre disponível ao elogio.
    Li muitas obras de Saramago, umas gostei mais, outras nem por isso, neste último grupo nem todas são consideradas obras menores, mas confesso que a partir de certa altura sentia-me que pareciam variações sobre um mesmo tema, como aqueles músicos que repetem à exaustão a fórmula que lhes deu sucesso e então fiz uma pausa. Depois já li outros romances distantes no tempo e voltei a deliciar-me.

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  2. Não tenho sentido isso em relação ao Saramago, não me pareceu até ao momento um autor repetitivo. A minha única má experiência com ele foi com “O Ano da Morte de Ricardo Reis” que não me cativou muito, mas talvez o tenha lido muito cedo.

    Gostar de um escritor, e eu gosto muito Saramago, para mim tem de implicar ser exigente, e parece-me que as opiniões sobre este livro se dividiram muito entre críticas e elogios gratuitos, infelizmente.

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