Nascer. Casar. Parir. Morrer. A vida das mulheres esgotava-se nestes quatro verbos, recaindo sobre si a obrigação de serem piedosas e serenas e destituídas de
qualquer vestígio de vontade própria. Mas o século XIX trouxe consigo a mudança
e, na Inglaterra vitoriana, um prodigioso grupo de escritoras redefiniu
através da literatura o papel da mulher. Falo obviamente de Jane Austen,
Charlotte e Emily Brontë. Mas falo sobretudo de George Eliot, ou melhor, de
Marian Evans, autora que se serviu de um nome masculino para levar as suas palavras
mais além e penetrar nos invioláveis espíritos masculinos.
Em “O Moinho à Beira do Floss” Eliot recria um bucólico
mundo campestre, habitado por personagens imperfeitas que tentam viver num
mundo cheio de expectativas. Entre estas personagens, constrangidas pelo
socialmente aceite, surge a figura da impulsiva e arrebatada Maggie Tulliver,
que aos olhos da nossa época é uma simples rapariga romântica, mas que, no
pacato mundo banhado pelo rio Floss, é uma rebelde que ousa juntar aos quatro
verbos que lhe foram destinados um quinto: amar.
O direito de uma mulher a amar é uma vitória do feminismo.
Até então as mulheres limitavam-se a aceitar o que lhes era destinado,
esperando-se que o fizessem de bom grado, subjugadas a um dever de devoção ao
marido. Sem perceber porque tinha de se sujeitar a vontades que não a sua, Maggie
desde nova se mostrou incapaz de controlar as suas emoções e essa é uma das
marcas feministas do livro. Maggie ama avassaladoramente o irmão, depois efabula
um romance com um rapaz que como defeito tinha, para além da corcunda, o facto
de ser filho do maior inimigo de seu pai. E por fim, vive uma platónica e
destrutiva paixão com o namorado da prima, a doce e cândida Lucy.
Mas a questão feminista não se esgota no amor. Maggie sai
favorecida de todas as comparações com os homens que ama: é mais hábil
socialmente que Philip, mais sensata que Stephen e mais inteligente que Tom, o
seu irmão. A figura de Tom empalidece particularmente sempre que contraposta à
da irmã: rígido e focado na perspectiva dos outros, Tom está mais próximo da
família da mãe (os Dodsons), do que da do pai (os Tullivers). Maggie, pelo
contrário, encontra no carácter explosivo do pai a compreensão e na coragem da tia
Moss, a irmã do pai que por amor casou com um homem pobre, uma inspiração.
Maggie, como mulher e como mais nova, deveria respeitar o irmão, mas ela ama-o
e, movida por esse sentimento e por aquilo que espera dele, coloca-o várias
vezes em causa. Quando as irmãs da mãe os visitam e se unem em críticas à
conduta do seu pai, é Maggie que defende a honra da família. E será Maggie que
no final regressará para junto de Tom e lhe demonstrará, com a força abnegadora
do seu amor, o quão mais digna é do que ele.
Algo extraordinário em “O Moinho à Beira do Floss” é a forma
como George Eliot questiona as nossas expectativas. A coerência com que algumas
personagens femininas são criadas faz com que o leitor sinta conhecê-las, o que
acentua a surpresa com as suas atitudes no final do livro. Eliot ensina-nos que
em vez de nos conformarmos em esperar o pior dos outros, lhes devemos dar o
benefício da dúvida.
Tom e Maggie crescem junto ao Floss e é junto a esse rio que se
reencontram quando se julgam perdidos um para o outro. A força do amor de
Maggie ultrapassa todos os obstáculos para ter Tom junto a si. Mas a natureza
tem uma forma de repor tudo no seu devido lugar, por muito abruptos e
inesperados que os seus desígnios se nos afigurem. No final apenas uma certeza:
independentemente de tudo, o Floss continuará sempre a correr para o mar.
Classificação: 18/20
(Livro editado em Portugal pela Relógio D'Água)
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