segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Em estado crítico: "Fugas" de Alice Munro


A vida tem uma forma incontrolável de nos afastar do nosso potencial. Uma força violenta e indestrutível que nos arrasta para caminhos que não são aqueles que queremos percorrer, sem que nada possamos fazer para o evitar. Alice Munro percebe isso melhor que ninguém, a crueldade de vermos desde cedo os nossos planos comprometidos, porque por muito que corramos, nada mais encontraremos do que aquilo que nos está reservado. E essa é uma moral que percorre os oito contos que compõem “Fugas”, editado em Portugal pela Relógio D'Água.

Munro ilustra o despedaçar das expectativas pela justaposição de extremos: em muitos contos, a um início promissor, na juventude, em que se revelam possibilidades, segue-se de imediato a velhice, e a percepção de que as possibilidades são geralmente pontos de interrogação para os quais não há resposta prevista. É o que acontece em “Truques”, por exemplo, em que a jovem Robin crê que a solução para uma vida que se adivinha ser dedicada a cuidar da irmã doente está num homem que conhece numa ida ao teatro. Por muito que a vontade de Robin de mudar o curso do seu destino seja grande, não o é o suficiente para ultrapassar o choque de um encontro inesperado. E passados anos Robin encontrar-se-á onde não queria estar, duramente consciente da vida que ficou por viver.

Também em “Forças Ocultas” há essa passagem abrupta do tempo. Numa página temos a impetuosa Nancy, cheia de planos e de desejo de partilhar a vida com o homem que ama. Na página seguinte a Nancy que se nos apresenta é uma derrotada, conformada com uma proximidade com o marido que nunca será alcançada e confrontada com o efeito ainda mais nocivo do tempo sobre aqueles com quem partilhou um período tão excitante da sua vida.

Mas nenhum exemplo será melhor do que o da trilogia “Acaso”/”Em Breve”/”Silêncio”. Começamos a ler “Acaso” sem a noção de que voltaremos a encontrar Juliet nos contos seguintes e, por isso, habituamo-nos à ideia de perdê-la dali a poucas páginas, enquanto acompanhamos as suas viagens rumo ao desconhecido, numa procura ansiosa pela mudança. Quando “Em Breve” começa, reencontramos Juliet passados poucos anos e percebemos que tudo se conjugou para que aquilo que desejava se concretizasse. Mas em “Silêncio”, 20 anos depois, o caminho bem sucedido revela as suas agruras e Juliet é atacada por onde menos espera. Aquilo que aconteceu nesses 20 anos é-nos eventualmente contado, mas o choque entre “o que deveria ser” e “o que é” é vincado pelo impacto inicial. 

Esta trilogia é de resto um dos exemplos mais notáveis dos talentos de Munro. A forma como discretamente as três histórias se interligam, como um simples acontecimento num dos contos nos dá uma chave para algo que acontecerá no futuro, fez-me lembrar a Trilogia das Cores do cineasta Krzysztof Kieslowski. Não é por acaso que Christa é mencionada em “Acaso”, tal como a discussão com o pastor Don em “Em Breve” também não é inocente. Mas talvez o facto mais interessante destes três contos seja aquilo a que não assistimos em “Em Breve”, por estarmos focados em Juliet e não podermos olhar para o que passa noutras paragens, e que só ficaremos a saber em "Silêncio". Uma teia primorosamente tecida.

Todos os contos de “Fugas” são excelentes. Talvez o menos bem conseguido seja “Forças Ocultas”, pela mistura de formatos no início (diário, depois narração, depois carta, depois narração) e porque há algo na história que simplesmente não funciona muito bem. Mas perante a qualidade do que lemos até ali, é com prazer que acompanhamos estas 50 páginas finais, mesmo que não sejam tão boas quanto o resto.

Por muito que tenha gostado dos contos de Juliet, a história que mais me marcou foi a de “Fugida”, pela riqueza de imagens que Munro usa e a forma decidida como constrói uma relação perversa entre Clara, Clark e Sylvia, envolvendo o leitor deste o início num ambiente de ansiedade, com um sentido de perigo iminente. A forma como a cabrinha Flora é utilizada na história e a incerteza dos últimos parágrafos do conto são um exemplo do que uma escritora genial consegue fazer com tão pouco.

“Fugas” é um livro surpreendentemente bom, uma ode às potencialidades do conto, tantas vezes visto com um género menor. Mas mais que isso, “Fugas” é o testemunho do talento de uma escritora que permanecerá por muitas gerações como uma referência. E quem pensa que as histórias de Munro são delicodoces e inocentes está redondamente enganado. Munro habita o mais complexo e perigoso dos mundos, o da vontade humana, uma vontade que muitas vezes é apenas isso, uma vontade.


Classificação: 18/20

2 comentários:

  1. Li-o em inglês há já vários anos, prefiro ler em Português bem traduzido mas na altura Munro ainda não era fácil de encontrar por cá e nas minhas idas ao Canada enchia as livrarias, já muito me esqueci, mas essa técnica de interligar contos é de facto um dos grandes atributos de Munro.
    Lembro-me que então o conto que mais me marcou foi também o que está traduzido como Fugida... mas até hoje gostei de todos os livros desta escritora.

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  2. Olá Carlos,

    Ainda bem que estamos de acordo. Até hoje Munro também não me desiludiu e não creio que venha a acontecer. A tradução deste livro, da Margarida Vale de Gato, parece-me muito bem feita, o que tornou a leitura muito agradável. Um excelente livro, sem dúvida!

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