“Ferido pelas lanças mortais das nostalgias próprias e alheias, admirou a impavidez das teias de aranha nas roseiras mortas, a perseverança da cizânia, a paciência do ar no radiante amanhecer de Fevereiro. E então viu o menino. Era uma pele inchada e ressequida que todas as formigas do mundo iam arrastando trabalhosamente para as suas madrigueiras pelo caminho de pedras do jardim.”
Aureliano e Amaranta Úrsula amam-se numa casa vazia. Nas
divisões tomadas pela natureza, onde ainda deambulam os fantasmas dos seus
antepassados, não restam recordações dos tempos de prosperidade em que a
estirpe dos Buendía comandava Macondo, a pequena povoação que José Arcadio
Buendía ajudara a construir, e que mais tarde seria visitada por uma família de
ciganos que lhes apresentaria o gelo.
Ignorando que são tia e sobrinho, Amaranta Úrsula e
Aureliano amam-se, sem que nas suas cabeças ecoem as advertências de Úrsula de
que da união de membros da mesma família nascerão crianças com rabo de porco. Entregues
um ao outro, olham como uma miragem para as histórias do destemido Coronel
Aureliano, que todos pensam ser um mito, mas já não restam nas suas memórias
vestígios da infeliz Amaranta que por medo se recusou a viver os grandes amores
que a vida parecia disposta a proporcionar-lhe. Aos poucos e poucos esquecem também Remédios, A Bela, sua tia, com a sua nudez inocente e uma existência tão sobre-humana
que ninguém se espantou quando levitou em direcção ao céu e se perdeu no
infinito azul celestial.
Ao ficarem apenas os dois, Amaranta Úrsula e Aureliano
concretizam a solidão da sua linhagem, que anos antes era camuflada pelas
múltiplas figuras fortes que habitavam a casa e o ritmo frenético a que se
sucediam os acontecimentos marcantes. Uma solidão que é a de quem não é livre
para viver uma vida pacata, dominado por vezes por um desejo de viver
excessivamente, outras vezes por uma ânsia de descobrir os grandes mistérios da criação do ouro ou de desvendar os pergaminhos deixados por um sábio
cigano.
Gabriel García Márquez queria criar um livro que contivesse
em si todo o mundo e conseguiu-o. Os cem anos de solidão dos Buendía são um
arquétipo dos efeitos do tempo e da evolução histórica. Com as suas personagens
com nomes semelhantes, como se cada novo Buendía se escondesse na sombra dos
seus predecessores, tentando enganar-nos, é como se García Márquez recriasse o
princípio de Lavoisier e a história não fosse mais do que uma constante transformação
do já existente, em que as mesmas figuras surgem com pequenas diferenças e os
factos do passado se recriam continuamente, numa vertiginosa rota decadente.
“Cem Anos de Solidão”, editado em Portugal pela Dom Quixote, é de uma perfeição cristalina. Uma obra
esculpida com as memórias da infância de García Marquéz em Aracataca, no mundo
místico da casa dos seus avós, em que a cadência narrativa e a gestão da acção
revelam os quase divinos talentos do escritor. E como esquecer Rebeca Montiel, a
devoradora de terra e de cal das paredes, Pilar Ternera, que das sombras ajudou
a moldar a família, Santa Sofia de la Piedad, sempre presente e no entanto
quase como se não existisse. José Arcadio, o gigante tatuado que partiu com os
ciganos, Aureliano Segundo, o bondoso homem com uma vida dominada pelos excessos,
Fernanda del Carpio, a nobre e severa mulher que se correspondia com médicos
invisíveis e Mauricio Babilonia, o trágico apaixonado com o seu rastro de
borboletas amarelas? Como esquecer a peste da insónia, as infindáveis guerras
travadas pelo Coronel Aureliano, a chegada do comboio, a plantação de bananas,
a chuva que durou quatro anos, onze meses e dois dias, a entrega de vários
membros da família à descodificação dos pergaminhos de Melquíades, Rebeca
Montiel velha só numa em casa em ruínas esperando a morte?
As últimas páginas de “Cem Anos de Solidão” são uma ode
assombrosa, como se um furacão tomasse conta do mundo e Macondo se preparasse
para desaparecer. Chegamos ao fim sem fôlego, fechamos o livro hesitantemente, mas não conseguimos fugir
à imagem do ancião José Arcadio Buendía preso à árvore. Perdido no seu mundo, talvez pensando sobre o destino da sua família. Só, como convém a um Buendía.
Classificação: 20/20
Sem dúvida que literariamente é um livro muito acima da maioria dos livros, penso que no pódio da literatura mundial, só não sei se com empate com outros de um reduzidíssimo número de obras que merecem estar neste pódio.
ResponderEliminarSe decidires ler mais sugiro A hora má: o Veneno da Madrugada e Ninguém escreve ao Coronel
ResponderEliminarO Ninguém escreve ao Coronel já li e também gostei muito, aliás o título tornou-se num dito meu habitual quando estou a aguardar alguma notícia que não se concretiza. O outro fica anotado.
ResponderEliminarObrigado pelas sugestões. Para já vou ler outros autores, mas hei-de voltar ao García Márquez. Tenho por casa o "O Outono do Patriarca" que aparece colocado entre os melhores livros dele.
ResponderEliminarProvocaste-me vontade de voltar a ler. Já lá vão muitos anos, mas a ideia principal que retive na altura sumariaste muitíssimo bem como a frase:
ResponderEliminar"Com as suas personagens com nomes semelhantes, como se cada novo Buendía se escondesse na sombra dos seus predecessores, tentando enganar-nos, é como se García Márquez recriasse o princípio de Lavoisier e a história não fosse mais do que uma constante transformação do já existente, em que as mesmas figuras surgem com pequenas diferenças e os factos do passado se recriam continuamente, numa vertiginosa rota decadente."
Ola!
ResponderEliminarTenho este livro na minha lista de leituras pendentes.
Gostei muito da tua resenha.
Nos lemos!
Beijinhos.