“No dia em que iam matá-lo, Santiago Nassar levantou-se às 5h30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava uma mata de figueiras-bravas, onde caía uma chuva miúda e branda, e por instantes foi feliz no sono, mas ao acordar sentiu-se todo borrado de caca de pássaros.”
Enunciar de forma banal factos que irão ocorrer no futuro é
um recurso comum no realismo mágico e uma característica que sempre me espantou.
Quando menos esperamos, sem que tenha havido um cuidado em preparar-nos para o
que vai acontecer, lemos uma frase lacónica que nos revela o destino de uma
personagem, muitas vezes a sua morte, várias páginas antes de se
concretizar. “Crónica de uma Morte Anunciada”, editado em Portugal pela Dom
Quixote, leva esse conceito ao extremo ao revelar-nos na primeira frase a morte
de Santiago Nassar. E se a primeira frase deixa uma margem mínima para a
dúvida, Gabriel García Marquéz assegura-se o que o leitor não sai do primeiro
capítulo sem certezas. “Já o mataram”, assim termina a primeira parte desta
crónica.
O livro não se foca portanto no que vai acontecer, o leitor
não percorre as páginas antevendo um final porque o conhece de antemão. A ideia
é outra, a de estimular o interesse pela revelação dos detalhes que levaram aos
acontecimentos. Há por isso um relato factual, sem espaço para grandes considerações
morais ou de enquadramento. Aos poucos vamos sabendo que Santiago Nassar foi
morto pelos irmãos de Angela Vicario, cujo casamento com Bayardo San Román se
deu no dia anterior. Na noite de núpcias Bayardo descobre que Angela já não é
virgem e devolve-a à casa da sua família e Angela, pressionada a nomear o homem
que a desonrou, profere o nome de Santiago Nassar.
Nunca saberemos se a sua acusação é verdadeira. O que se
torna óbvio é que há dois elementos a conspirarem contra Santiago Nassar: a
honra e o destino. A noção de honra é uma das forças propulsoras que conduzem a
narrativa ao seu cenário final. Os irmãos de Angela agem sem estar
dominados por uma vontade de vingança e tomam todas as providências para que a
morte de Santiago possa ser evitada. Esperam-no num local público, informam
todos sobre as suas pretensões, rogando no seu íntimo que alguém o avise atempadamente e
possam sair daquela situação com a honra da sua família intacta e Santiago com
a sua vida.
O desejo dos irmãos de Angela de que algo os impeça de
executar aquilo que a sociedade espera deles esbarra com uma força demolidora:
o destino. Santiago tem as probabilidades a seu favor, mas o destino procura
vorazmente a sua morte e assegura-se que todos os passos que dá sejam os errados e que o conduzam às facas
empunhadas pelos irmãos de Angela. Num golpe de má sorte, quando se encontra a poucos metros de entrar na sua casa e escapar aos seus assassinos, a porta é fechada
pela sua mãe que o crê em casa e que pensa estar assim a evitar que os homens o encontrem. Plácida Linero determinará com esse gesto o fatal destino do seu
filho.
A morte de Santiago Nassar torna-se ainda mais cruel quando
descobrimos que anos mais tarde Angela e Bayardo se reencontram e vivem por fim
o seu amor. Para trás fica um rastro de cartas por ler,que Angela endereçou a
Bayardo durante anos, e a desnecessária morte de um homem condenado pelo
destino e não pelos actos.
Gabriel García Márquez consegue transformar uma história simples
num livro marcante para todos os que o leiam, em grande parte pela mestria com
que nos conta a história, com que manipula a narrativa para que vivamos a mesma
história de diferentes ângulos. Revela-nos prontamente a morte de Santiago
Nassar porque tem a força de um facto, embora não tenha ainda acontecido. No
fim, os homens são sempre fracos perante o fado caprichoso que os domina.
Classificação: 18/20
Pelo menos sobre este livro vejo que também se sentiu bem tocado por esta pequena enorme obra de arte.
ResponderEliminarSim, gostei muito do livro. A prova de que os romances não precisam de ser enormes para serem muito bons.
EliminarO Gabo é neste livro o verdadeiro spoiler...
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