O desafio de escrever pequenos contos em que o significado
complexo e a profundidade emocional extravasam em muito o número de caracteres
usado faz de Lydia Davis uma escritora muito particular. Não que seja sempre
bem-sucedida, e “Quase Sem Memória” está repleto de exemplos em que não o é,
mas nos momentos em que tudo se alinha geram-se momentos de um grande fulgor
literário, em que nos espantamos por alguém conseguir fazer tanto com tão pouco,
produzir em poucas páginas o que muitos não conseguem em romances longuíssimos.
“Quase Sem Memória” vive do presente, da emoção momentânea,
de uma espécie de entrega inconsequente aos impulsos. Não há pretensões de
tentar perceber, de colocar factos em perspectiva. Não há passado, há o agora e
isso basta. “Carne, o Meu Marido” é disso um excelente exemplo, sendo um
ilustre representante dos contos de mulheres psicóticas, uma categoria em que
Davis é mestre. O conflito base é simples e do mais mundano que pode haver: uma
mulher que quer impor as suas escolhas gastronómicas saudáveis ao marido e que
se ressente pela sua falta de entusiasmo. Apesar de a mulher saber de antemão
quais as preferências do marido e que aquilo que lhe quer impor as viola por
completo, jamais há uma atitude de compreender a perspectiva do marido e pensar que naquele caso talvez seja ela o elemento pouco sensível. Para ela o
que importa é que ele não gosta do que ela lhe quer impor e isso tolda qualquer
visão racional sobre o tema, chegando ao ponto de achar que ele só não gosta
das suas propostas culinárias porque partem dela, havendo portanto uma
animosidade inconfessável em relação a si.
“Jack no Campo” é um divertido exemplo da dedicação a
intensas emoções espontâneas, em que o mero acto de Henry, que ocasionalmente
encontra Jack na rua, lhe perguntar por Laura gera uma série de mal-entendidos,
sem que ninguém nunca tente perceber o que se passa. Num jogo de palavras em
que os nomes de Henry, Jack, Ellen e Laura são constantemente repetidos ao
longo das poucas linhas que constituem o conto, manifesta-se a irritabilidade e
o carácter complexo das intensas emoções envolvidas numa história que de facto
não tem importância nenhuma.
Um dos melhores contos deste conjunto é sem dúvida “Os Ratos”,
curiosamente um dos mais pequenos, porque é um arquétipo do conto de Lydia
Davis. De um bom acontecimento, os ratos não atacarem a casa do narrador,
gera-se um mau sentimento: porque não atacam a sua casa e atacam a do vizinho?
Ainda por cima a casa do vizinho está mais limpa! A opção aparentemente
benéfica dos ratos converte-se num símbolo de desdém, quase como se houvesse uma
decisão racional, um desejo intencional de os desprezar. A inveja e a mania
da perseguição são elevadas a um extremo de loucura.
Num registo já bastante diferente, mas também muito interessante,
“As Bisavós” é um conto mais surrealista em que, ao se esquecerem das bisavós a
apanhar Sol, as encontram metamorfoseadas, como se fossem uma substância e não
seres vivos. Tudo apresentado numa perspectiva meramente descritiva, sem qualquer tipo de
emoção ou sentimento de estranheza.
Há outros contos bons em “Quase Sem Memória”, o segundo
livro integrado nos “Contos Completos” editados em Portugal pela Relógio D’Água.
Infelizmente há também muitos contos irrelevantes e, pior do que isso, muitos
contos que se esgotam em jogos de palavras, um esquema que Davis usa
frequentemente e que consiste em repetir frases semelhantes mas com alterações
que lhes transformam o sentido. Por isso “Quase Sem Memória” não é um livro
incontornável, embora o sejam alguns dos seus contos.
Classificação: 14/20
(Este é o segundo de uma série de quatro artigos sobre
“Contos Completos” de Lydia Davis, pulicado em Portugal pela Relógio D’Água.
Cada artigo incidirá sobre um dos livros individuais contidos nesta colectânea,
tendo “Acerto de Contas” sido o centro do primeiro artigo.)
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