terça-feira, 7 de abril de 2015

Em estado crítico: “Contos Completos - Quase Sem Memória” de Lydia Davis


O desafio de escrever pequenos contos em que o significado complexo e a profundidade emocional extravasam em muito o número de caracteres usado faz de Lydia Davis uma escritora muito particular. Não que seja sempre bem-sucedida, e “Quase Sem Memória” está repleto de exemplos em que não o é, mas nos momentos em que tudo se alinha geram-se momentos de um grande fulgor literário, em que nos espantamos por alguém conseguir fazer tanto com tão pouco, produzir em poucas páginas o que muitos não conseguem em romances longuíssimos.

“Quase Sem Memória” vive do presente, da emoção momentânea, de uma espécie de entrega inconsequente aos impulsos. Não há pretensões de tentar perceber, de colocar factos em perspectiva. Não há passado, há o agora e isso basta. “Carne, o Meu Marido” é disso um excelente exemplo, sendo um ilustre representante dos contos de mulheres psicóticas, uma categoria em que Davis é mestre. O conflito base é simples e do mais mundano que pode haver: uma mulher que quer impor as suas escolhas gastronómicas saudáveis ao marido e que se ressente pela sua falta de entusiasmo. Apesar de a mulher saber de antemão quais as preferências do marido e que aquilo que lhe quer impor as viola por completo, jamais há uma atitude de compreender a perspectiva do marido e pensar que naquele caso talvez seja ela o elemento pouco sensível. Para ela o que importa é que ele não gosta do que ela lhe quer impor e isso tolda qualquer visão racional sobre o tema, chegando ao ponto de achar que ele só não gosta das suas propostas culinárias porque partem dela, havendo portanto uma animosidade inconfessável em relação a si.

“Jack no Campo” é um divertido exemplo da dedicação a intensas emoções espontâneas, em que o mero acto de Henry, que ocasionalmente encontra Jack na rua, lhe perguntar por Laura gera uma série de mal-entendidos, sem que ninguém nunca tente perceber o que se passa. Num jogo de palavras em que os nomes de Henry, Jack, Ellen e Laura são constantemente repetidos ao longo das poucas linhas que constituem o conto, manifesta-se a irritabilidade e o carácter complexo das intensas emoções envolvidas numa história que de facto não tem importância nenhuma.

Um dos melhores contos deste conjunto é sem dúvida “Os Ratos”, curiosamente um dos mais pequenos, porque é um arquétipo do conto de Lydia Davis. De um bom acontecimento, os ratos não atacarem a casa do narrador, gera-se um mau sentimento: porque não atacam a sua casa e atacam a do vizinho? Ainda por cima a casa do vizinho está mais limpa! A opção aparentemente benéfica dos ratos converte-se num símbolo de desdém, quase como se houvesse uma decisão racional, um desejo intencional de os desprezar. A inveja e a mania da perseguição são elevadas a um extremo de loucura.

Num registo já bastante diferente, mas também muito interessante, “As Bisavós” é um conto mais surrealista em que, ao se esquecerem das bisavós a apanhar Sol, as encontram metamorfoseadas, como se fossem uma substância e não seres vivos. Tudo apresentado numa perspectiva meramente descritiva, sem qualquer tipo de emoção ou sentimento de estranheza.

Há outros contos bons em “Quase Sem Memória”, o segundo livro integrado nos “Contos Completos” editados em Portugal pela Relógio D’Água. Infelizmente há também muitos contos irrelevantes e, pior do que isso, muitos contos que se esgotam em jogos de palavras, um esquema que Davis usa frequentemente e que consiste em repetir frases semelhantes mas com alterações que lhes transformam o sentido. Por isso “Quase Sem Memória” não é um livro incontornável, embora o sejam alguns dos seus contos.

Classificação: 14/20


(Este é o segundo de uma série de quatro artigos sobre “Contos Completos” de Lydia Davis, pulicado em Portugal pela Relógio D’Água. Cada artigo incidirá sobre um dos livros individuais contidos nesta colectânea, tendo “Acerto de Contas” sido o centro do primeiro artigo.)

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