segunda-feira, 22 de julho de 2013

Em estado crítico: "A Fogueira das Vaidades" de Tom Wolfe




Um mundo de plumas, lantejoulas e enchumaços. Permanentes cristalizadas em laca nelas, bigodes farfalhudos neles. Reagan e Tatcher a comandarem o mundo ocidental. Madonna a tentar procriar com o palco nos prémios da MTV. E Tom Wolfe a imortalizar num livro esse mundo, essa época, os anos 80.

Nas numerosas páginas de “A Fogueira das Vaidades”, Tom Wolfe expõe as consequências que o atropelamento de um jovem negro tem na vida de Sherman McCoy, um yuppie de Wall Street. O ponto de partida do livro é muito interessante: McCoy vai buscar a sua amante ao aeroporto e, por engano, entra no Bronx. Quando se apercebem onde estão, entram em pânico e tentam desesperadamente voltar para aquilo que para eles é o mundo civilizado, Manhattan. Numa atribulada sequência, acabam numa via rápida com um pneu no meio da estrada. McCoy pára o carro e sai para desimpedir o caminho, quando de repente se aproximam dois jovens negros que oferecem ajuda. McCoy não duvida que se tratam de assaltantes e ataca para não ser atacado. No meio da confusão, Maria (a amante) e McCoy atropelam um dos jovens negros e fogem.

Perante este episódio seria de esperar que “A Fogueira das Vaidades” questionasse os estereótipos sociais e levasse o leitor a reflectir. Quais seriam as intenções dos dois jovens? Seriam de facto assaltantes? O que deveria McCoy ter feito? Após o atropelamento, deveriam ter prestado ajuda? Deveriam ter contactado a polícia? Mas Tom Wolfe não parece ser um homem de reflexões. De facto, num livro tão grande e em que a moral desempenha um papel tão importante, espanta o quão pouco são exploradas as questões internas das personagens. E, quando o são, o mote é sempre o mesmo: a imagem que se projecta e aquilo se possui. È verdade que o livro se chama “A Fogueira das Vaidades” e não “A Fogueira do Existencialismo”, não obstante, seria interessante que a vida interior das personagens não se limitasse a questões supérfluas, evitando que os quatro homens em destaque no livro (McCoy, o procurador-adjunto Kramer, o reverendo Bacon e o jornalista Peter Fallow) fossem tão semelhantes entre si.

Falando de construção de personagens, há uma certa misoginia na escrita de Tom Wolfe. As poucas personagens femininas do romance são também muito semelhantes entre si: tendencialmente fúteis e desinteressantes. Excepção feita para Maria Ruskin, uma femme fatale por excelência, que com a sua inebriante sexualidade leva McCoy a tomar más decisões. Wolfe escuda-se na dicotomia Mulher Sexual e Mulher Não-Sexual e, mais uma vez, limita as suas personagens a uma unidimensionalidade irrelevante.

Que mais dizer sobre “A Fogueira das Vaidades”… Talvez que Tom Wolfe tem dificuldades em saber gerir a acção e que acha que tem de nos descrever minuciosamente tudo o que se passa. Numa das cenas do livro, em que McCoy vai com a mulher a uma festa, o nível de detalhe atinge proporções ridículas, com uma descrição detalhada da decoração, das pessoas, das conversas antes do jantar, das movimentações entre salas, do jantar, das conversas durante o jantar, do discurso de um dos convidados, um sem fim de palavras numa cena que não é assim tão importante. E é sempre assim, durante todo o livro. Não havia necessidade!

Algures em “A Fogueira das Vaidades” há um livro bom. O problema é que existem também, pelo menos, dois livros desinteressantes. O interesse da história pensada por Wolfe perde-se num livro demasiado grande para as personagens criadas. Salva o livro o talento de Wolfe para escrever diálogos e um estilo de escrita que torna a leitura mais leve do que seria de esperar.

Classificação: 13/20

(Livro editado em Portugal pela Dom Quixote)

6 comentários:

  1. Muito bem. Gostei muito de ler a tua análise ao livro :)

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  2. Acho que a reflexão existencialista não teria mesmo espaço na narrativa que Tom Wolfe sintetizou para esse livro. Apesar de nunca tê-lo lido, li, sim, vários comentários a respeito dele em revistas de 1988 (ano em que "A Fogueira" foi lançado aqui no Brasil). E em todos esses comentários, havia um consenso sobre a intenção de Wolfe em traçar, acima de qualquer outra coisa, um retrato da Nova Yorque naquele fim da década de 80. Alguns a chamavam a cidade de "Capital do Mundo nos Anos 80", daí, talvez, a obsessão. E mesmo sem conseguirem prever o fracasso do filme (que também não cheguei a assistir, ainda que ciente dos comentários de que ele naufragou nas superficialidades já conhecidas de Hollywood), o livro foi definido pela crítica daqui como um dos três mais importantes do ano de 1988.

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    1. Sim, para mim é claro o objectivo do livro e nessa perspectiva tem os seus méritos, mas parece-me uma análise muito superficial. É mais um livro sobre as ideias feitas sobre os anos 80, do que um livro de facto sobre os anos 80.

      Acho que a forma como o livro é construído não é muito bem conseguida e, apesar de o objectivo não ser uma reflexão existencialista, isso não implica que as personagens tenham de ser tão unidimensionais. Enfim, a crítica terá a sua opinião e haverá certamente quem goste do livro, já eu digo com convicção que não merece que lhe seja concedida uma atenção excessiva.

      Não é mau, é simplesmente um livro que parte de uma boa ideia e a trata de forma totalmente desprovida de génio.

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  3. Olhe, estou lendo o livro e discordo do tom (!) negativo do teu comentário. Como tu mesmo observaste, é uma "fogueira das vaidades"... a descrição da festa, que criticaste duramente, é, neste sentido e até aqui, uma das melhores passagens do livro e, talvez, da literatura mundial. Ali crepita de forma evidente o fogo dos egos queimantes, e os detalhes ricamente oferecidos pelo autor são o oxigênio que favorece a combustão. Ainda não concluí a leitura, mas classifico o livro entre os muito bons, talvez ótimos livros que li. Quanto ao filme, na edição que estou lendo há uma apresentação do Paulo Francis que prediz que holywood estragaria a história.
    Data venia e com todo o respeito,

    Gustavo, cgwolffneto@ibest.com.br

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