domingo, 28 de dezembro de 2014

Não voltarei a ler Lobo Antunes


Imaginem-se num país estranho. O chão parece todo coberto de mármore rosa, mas quando olham de perto percebem que são reles placas de vinil pintadas. E pensam “onde está o reino de mil maravilhas que me foi prometido?”. Rumam sem rumo, procurando algo que faça a viagem valer a pena. De repente dão por vós junto a uma escadaria enorme, íngreme, com minúsculos degraus. A sinalética indica que no topo da escadaria há um restaurante paradisíaco, digno de receber os deuses sedentos de ambrosia. A custo, decidem subir, e vão andando e andando, já vos dói os calcanhares, escorregam uma série de vezes, quase desistem a meio e, quando já as últimas forças vos abandonavam, chegam ao topo. E à vossa espera… a maior chafarica de sempre! Cadeiras velhas e desconfortáveis, baratas pelo chão, com sorte comem um prego de pão duro e carne cheia de nervo. Para mim ler Lobo Antunes foi isto.

Li o “Exortação aos Crocodilos” há 7 anos. Foi-me oferecido por uma grande amiga, a Sílvia, que coitada mais não fez do que satisfazer um desejo meu e é em nome dela que aceito que este livro permaneça sob o meu tecto. Para perceberem a dimensão da desgraça, ia eu na página 200 quando me apercebi que as narradoras do livro eram 4 mulheres e não apenas 3 e segui em frente, como se nada fosse, nem sequer ponderando voltar ao início. O estilo de escrita, muito baseado em vozes que se emaranhavam, em constantes movimentos de aproximação e afastamento, até me pareceu interessante, mas noutro contexto. Não ali. Tudo era tão estéril, tão masturbatório… Mas mantive-me fiel ao meu princípio de dar uma segunda hipótese a escritores e predispus-me a voltar a Lobo Antunes no futuro. Com esse objectivo em mente, há dois anos comprei na Feira do Livro o “O Manual dos Inquisidores” e coloquei-o em lista de espera, sem pressa.

Cruzei-me pouco com Lobo Antunes nestes anos. Fui ouvindo algumas declarações dele, polémicas por norma, mas já conhecia a sua fama de quando passei pelo Cenjor e uma entrevista que lhe foi feita pela Isabel Stilwell, penso eu que para o Diário de Notícias, era apresentada como exemplo do que não fazer. Mas foi no início deste ano, também por causa da Sílvia, que me ofereceu o “Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer”, que voltei a contactar com Lobo Antunes mais de perto. A entrevista dele ao Carlos Vaz Marques incomodou-me, mas segui em frente, e até já estava convencido a ler o “Explicação aos Pássaros” quando li há poucas semanas outra entrevista de sua excelência no Diário de Notícias, que eu qualificaria como uma das coisas mais lamentáveis de sempre. Não por culpa do jornalista, coitado, que depois deve ter sido colocado a soro para limpar o organismo (um banho de salva, também não era mal pensado). Tanto disparate, tanta arrogância, tanta maldade proferida por alguém que diz considerar a bondade aquilo que mais admira nas pessoas. E assim fui empurrado para uma resolução: expurgar Lobo Antunes da minha vida. Não, não voltarei a ler Lobo Antunes. Já doei o “O Manual dos Inquisidores” a uma amiga. E passei estas semanas a recolher pérolas desta pessoa adorável para fundamentar a minha decisão.

Atenção: isto não quer dizer que eu considere que temos de gostar do escritor para gostar da obra, por norma a figura do escritor é-me indiferente, mas o Lobo Antunes esgotou a minha paciência e não quero perder mais tempo com ele. Prossigam neste texto por vossa conta e risco. Se são sensíveis a incoerências, ao chico-espertismo e carícias ao próprio ego fujam já, que o que se segue não é bonito.


A genialidade humilde do melhor de sempre


Lobo Antunes acha-se uma pessoa desinteressante. Ele não importa nada, o que importa são os livros. Mas os livros, é impossível falar deles. Ora, o que fazer então quando o autor não interessa e não se pode falar dos livros? Alguns de vocês, maldosamente, pensarão em “estar calado”, mas há que desafiar essas imagens feitas e falar desalmadamente, ter quase um guião montado que se repete de entrevista em entrevista. Dizer que se detesta entrevistas em entrevistas dadas no espaço entre entrevistas. Falar, falar, falar.

E porque os livros valem por si, e não precisam de mais nada, façam-se vídeos promocionais. Em que o autor se senta naturalmente junto a um piano, um candeeiro e um poster, que por acaso ali se encontram, e fala acompanhado por uma toada melancólica, risos em câmara lenta, citações e palavras que surgem para logo se desvanecerem. E viva a literatura pura!



Numa entrevista publicada na Única em 2010, Lobo Antunes falava do início da sua vida como escritor. “Ao contrário da minha família, que pensava que eu ia acabar na miséria, a vender pensos rápidos, eu tinha a certeza que não. Estava seguro do meu génio. Era uma coisa que não oferecia qualquer discussão.” Confiante o jovem Antunes, que há umas semanas afirmava no Público que “todo o escritor se acha o melhor senão não vale a pena escrever. Para não ser o melhor não vale a pena”, questão que felizmente para ele não é um problema, que sem pejo nenhum disse, numa entrevista à Fátima Campos Ferreira emitida pela RTP, “eu acho que sou o melhor”.

Mas se pensam que esta atitude revela falta de modéstia estão completamente enganados. Vejam bem, também na entrevista da Única, Lobo Antunes dizia: “Vou ficar. Estive a ler o texto de um crítico do "El País" que diz que daqui a cinco mil anos vou ser lido com paixão. Acho que ele tem razão.” No fundo é apenas uma vontade muito grande de não contrariar um crítico do El País, é um gesto de generosidade. Mas espera lá… o Lobo Antunes de 2014, no Diário de Notícias, quando confrontado com a excelente recepção que tem por parte da crítica portuguesa, e não apenas da internacional, não disse “não estou a falar em crítica de jornal, impressionista, mas da séria”? Estou algo confuso! Então a crítica em jornais é má, mas se for no El País a louvar o escritor já é boa? Mas se for em Portugal, com o mesmo louvor, já é má? E se não for a louvar, no estrangeiro? Muitas questões, cujas respostas estarão certamente nas múltiplas vozes que ecoam na cabeça de Lobo Antunes.

Se há coisa que Lobo Antunes faz questão de dizer é que tem muito orgulho de ser português. E do que é que ele não tem orgulho? Da literatura  portuguesa. “Porque é que a literatura portuguesa é tão má?”, dizia este grande nacionalista na entrevista ao Público. E na entrevista ao Diário de Notícias que motivou este meu artigo há a menção a Eça e Camilo como “pigmeus”, isso mesmo, autores sem capacidade de competir com os seus contemporâneos estrangeiros. Eu acho que o Lobo Antunes devia tomar um banho de álcool e fazer um jejum mínimo de uma semana antes de sequer mencionar os nomes de Eça e Camilo, mas quem sou eu!

Mas há algo que o Lobo Antunes gosta mais de fazer do que criticar os outros. Diz-se que a vida é feita de equilíbrio, e de facto uma pessoa tão rigorosa e exigente com os outros terá depois dificuldades em aplicar os mesmos padrões a si próprio (vá, vamos fingir que acreditamos nisto). O auto-elogio é uma das artes Lobo Antonianas, geralmente atribuído a outra pessoa e proferido com aquele ar de enfado que é um dos charmes de tão prestigiada figura. “O Christian Bourgois editor francês da obra de Lobo Antunes, com quem não falava de livros, escreveu-me uma carta, antes de morrer, em que diz: "Tu és meu irmão e não há escritor no mundo que admire tanto." Nunca me tinha dito isto. Era um homem que parecia seco, mas por baixo dessa frieza aparente havia um calor humano extraordinário”, revelava humildemente à Única, com o bónus da falar de si na 3ª pessoa, o que se compreende perfeitamente porque o homem é uma instituição. Em várias entrevistas esse mesmo tipo de admiração é atribuída a Cardoso Pires, Eugénio de Andrade e Jorge Amado. Curiosamente são sempre pessoas que morreram… Minto, o Steiner também está neste grupo que, segundo o modesto escritor confessou ruborizado à Estante, “disse numa entrevista que tinha vergonha de me conhecer porque era pequeno de mais ao pé de mim.“ O Steiner é uma pessoa de uma enorme elegância e é possível que tinha dito tal coisa, movido sobretudo pela educação. O que não é nada elegante é o destinatário de tais comentários fazer deles gáudio em entrevistas. Mas como vamos ver a elegância não é um dos fortes de Lobo Antunes.


Não te perguntes o que podes fazer pela tua editora, critica-a em público


Ai o grupo Leya… Coitados. Não deve ser pêra doce ter de gerir alguém como o Lobo Antunes. O mais espantoso nesta frustrante história é que já em 2008, na entrevista ao Carlos Vaz Marques, Lobo Antunes se queixava que não estava contente com a editora, dizendo que “não havia, não se sentia, não se via uma linha orientadora, um projecto editorial coerente”. Mas, quando a Dom Quixote foi integrada na Leya prometeram-lhe que seria uma editora de literatura sem concessões (introduzir riso). Pois bem, passados 6 anos e livros da Ana Zanatti e da Rita Ferro, livros infantis da Madonna e um sortido de policiais de ar duvidoso, terá a Dom Quixote conseguido esconder as suas opções de Lobo Antunes?

Na famigerada entrevista ao Diário de Notícia diz-se em alto e bom som: “o Grupo Leya tem muitas deficiências e não tem editores no sentido em que eu o entendo. São pessoas que publicam livros.” Isto depois de desacreditar o Prémio Leya, dizendo que os livros que ganharam não têm grande qualidade. Quantos terá ele lido? Ah, e diz também que o prémio tem muito dinheiro. Esses escritores pá, uns lambões a abotoarem-se com aquela dinheirama. Pouca vergonha! E as editoras a darem dinheiro a escritores?! Este mundo está perdido. Se ao menos eles fossem como o Lobo Antunes que diz que os prémios lhe dão jeito, sobretudo quando vêm com dinheiro… O quê?! Ai, querem ver que há aqui outra incoerência!

Não digo que algumas das crítica do Lobo Antunes à Leya e à Dom Quixote não sejam merecidas. Mas a relação autor/editora deve ser de confiança e de interajuda, caso contrário, de que vale todo o trabalho? O autor tem todo o direito a fazer críticas, mas à porta fechada. Mais uma vez, uma questão de elegância. Em última análise, se não é ouvido, tem bom remédio: mudar de editora! O que nos leva à pergunta que não quer calar: o que prende Lobo Antunes à Dom Quixote? Falta de opção não será. Ele dizia ao Carlos Vaz Marques que não era questão de dinheiro, que ele se borrifava para isso. Então, porque não tornar-se um eremita literário numa pequena editora? É curioso que os autores que clamam independência e criticam a lógica comercial acabem sempre em grandes grupos, uns a fazerem vídeos, outros a gravarem cds… A superioridade moral é de facto algo fácil quando se limita à verborreia. Há uma expressão americana que encaixa aqui que nem uma luva: put your money where your mouth is!


Lobo Antunes versus Saramago: nem a morte os separa


A rivalidade entre os dois escritores é famosa, ou melhor, de Lobo Antunes com Saramago, porque para ser sincero nas vezes que vi Saramago a falar de Lobo Antunes foi para relativizar ou defender-se. Aliás, ler a entrevista a Saramago seguida à de Lobo Antunes em “Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer”, de Carlos Vaz Marques, permite identificar facilmente diferenças de atitude. Podia ter feito desta rivalidade o centro do meu artigo, mas as duas referências que encontrei a Saramago em entrevistas do Lobo Antunes são suficientemente elucidativas e sinceramente, sendo eu um fã confesso de Saramago, quis poupar-me a mais irritações. Vou por isso ser sintético e directo, sem adjectivar muito o que foi dito, porque não há necessidade de fazê-lo.

Na entrevista já aqui mencionada a Carlos Vaz Marques, em 2008, a respeito da inclusão da Dom Quixote no grupo Leya, o entrevistador provocou-o referindo que assim Lobo Antunes e Saramago estão no mesmo grupo. A irritação é logo evidente e, entre afirmações de que nunca leu nada de Saramago (ler um pouquinho dos “Cadernos de Lanzarote” e folheou um ou outro romance – daqui a minha saudação às pessoas que formam opiniões sobre um livro folheando-o), saiu-lhe a seguinte frase: “Ó Carlos, se me quiser arranjar competições arranje-me pessoas do meu tamanho.” (Vamos fazer um pequeno intervalo para recuperar a calma. Acho que todos precisamos… É nestes momentos que uma pessoa gostaria de fumar.)

E perguntam vocês: o que é que pode ser pior do que autonomear-se melhor do que um escritor que venceu o Nobel? Fazer pouco desse autor depois de ele ter morrido. Lembram-se da história da elegância de que falava no início, acho que se havia um resquício dessa palavra que pudesse ser associado a Lobo Antunes, na próxima passagem tudo terminará. O ponto alto da entrevista publicada em Novembro no Diário de Notícia, a respeito do Nobel:

Lobo Antunes: (…) Se um português ganhasse aquele prémio, como é tão importante seria uma alegria para as pessoas da nossa terra.

Entrevistador: Isso foi o que disse José Saramago!

Lobo Antunes: Ele disse isso? Então em alguma coisa acertou. Ele disse que era uma alegria para os portugueses?

Entrevistador: Sim, que cresceram 3 centímetros.

Lobo Antunes: Ele disse isso… Então quantos metros não cresceu ele na própria cabeça. É um homem especial e tem de ser visto da maneira como ele era, mesmo que agora tudo se vá desvanecendo devagarinho.

Quem cresceu uns metros na sua própria cabeça foi certamente Lobo Antunes quando recebeu o Prémio Jerusalém. “O Prémio quê?!”, perguntam vocês. “O Prémio Jerusalém!”, respondo eu com um ar ainda mais incrédulo. Como é que é possível que não conheçam o Prémio Jerusalém, que é o mais prestigiante do mundo literário segundo… Lobo Antunes, o único português que o recebeu, em entrevista à Fátima Campos Ferreira. Diz a sabedoria popular que uma mentira mil vezes repetida se transforma em verdade. Vamos tentar. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. (estão a sentir alguma coisa?) O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. (do meu lado nada!) O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. (acho que isto não vai resultar…)


Em jeito de conclusão


De quem é a culpa disto tudo? Das pessoas. Porque são elas que legitimam este actos ao acharem que alguém genial pode ser arrogante e dizer o que lhe vêm à cabeça e que nós, pobres mortais, nos devemos prostrar e sentir-nos abençoados por podermos assistir. Para mim com um grande talento, vem uma grande responsabilidade, o que ainda torna menos desculpáveis actos pouco dignos.

Não ponho em causa o valor literário da obra de Lobo Antunes. Não gostei do que li, mas acredito que haja outros livros bons. Mas também acredito que não se encaixam naquilo que é para mim um livro bom, porque os malabarismos literários, quando não são bem sustentados em boas histórias, não fazem muito o meu género. E fazendo uma análise custo benefício, acho sensato que o meu caminho e o de Lobo Antunes não se voltem a cruzar. De qualquer forma, ele próprio dizia que ninguém escreve bons livros depois dos 70 e tal anos…

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Em estado crítico: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” de José Saramago


“Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és os meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.”


Da cera das velas ardidas a Igreja foi criando as suas grandes figuras, que como ídolos de barro presidem à História, destituídas do direito mais fundamental que cada um possui: o de ser humano e poder escolher. Maria e Jesus viram a sua humanidade ser-lhes recusada. Maria foi até expurgada da sua sexualidade, trocando a natural fecundação pela imaculada concepção. Nem o direito de gerar um filho como as outras mulheres Maria teve, tal como Jesus, o filho de um acto ascético, viu ser-lhe negada a possibilidade de falhar, sentir e optar. Saramago restituiu a Maria e a Jesus a sua dignidade enquanto seres humanos e apresenta-nos um Evangelho escrito pela perspectiva de Jesus, não porque ele o narre, mas porque são os seus interesses que estão no centro da história e não a caprichosa vontade divina.

Saramago realiza na escrita deste livro um acto de enorme coragem, não só pelo quão herético é tudo o de nos apresenta (segundo as crenças da Igreja), mas por agarrar na mais conhecida história do mundo cristão e ousar recriá-la como se usasse as mesmas notas, mas produzisse uma música diferente, com laivos enevoados da original.

Maria tem vários filhos, todos fruto de actos carnais, sendo Jesus o mais velho de todos. Todas as figuras têm virtudes, mas têm também as suas falhas. Jesus é pouco mais do que um adolescente tradicional quando se rebela contra os seus pais, afastando-nos da mente a figura piedosa idealizada, incapaz de perdoar ao pai morto uma falha e acusando a mãe de conivência, deixando-a à sua sorte com vários filhos para criar. Mas também Maria errará quando Jesus voltar para lhe revelar a sua ligação com Deus, não acreditando nele, que contará com maior apoio de estranhos do que da sua própria família,

Jesus é a cada pulsar um homem, não uma figura seráfica, capaz por vezes de grandes actos, como a recusa em sacrificar o cordeiro, mas que não renega os seus impulsos, mesmo os carnais. A relação entre Jesus e Maria de Magdala é um amor plenamente vivido e celebrado fisicamente e é a relação de maior transcendência e pureza do livro, havendo uma ligação espiritual entre os dois que faz com que Jesus esteja disposto a tudo enfrentar por ela, e ela a tudo abandonar por ele. É o Jesus compreensivo e que ama o próximo que não condena Maria da Magdala pelo seu passado e que a trata com um respeito proporcional à devoção que ela lhe vota.

Mas de nada serve a Jesus ter vontade porque no fim não terá como escapar aos ambiciosos planos de Deus, disposto a tudo para alargar a sua influência. Para Deus tudo não passa de um jogo de xadrez e Jesus é uma peça que ilusoriamente pensa poder escusar-se a fazer parte do jogo. Num acto de desespero, tentando corrigir o que se adivinha inadiável, Jesus acredita que se puder morrer como aspirante a Rei dos Judeus e não como filho de Deus a sua morte não servirá os planos divinos. Mas não  tardará muito a perceber que tudo o que fizesse o levaria àquela cruz, cruelmente privado por Deus da sua vontade, como nos séculos vindouros o será por multidões fanáticas que cumprirão as imagens que lhe foram reveladas quando foi convidado a juntar-se a esta empresa pela glória terrestre.

“O Evangelho Segundo Jesus Cristo” é um acontecimento literário por direito próprio, um livro que será lido por anos e anos, sem perder a sua pertinência. A voz de Saramago eleva-se e adquire proporções mitológicas, como se um eco profético se apoderasse do leitor. Saramago reconta-nos uma história, mas acima de tudo dá-nos uma lição e pobres daqueles que não a conseguirem perceber. Um livro acima do céu e da terra.


Classificação: 20/20

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

A dependência dos livros - edição Dezembro de 2014


Como sabem sou um fervoroso adepto de cair reiteradamente em tentações literárias e o Natal é a altura do ano indicada para uns pecados mais substanciais. O meu lema é comprar muito por pouco, mas abro aqui a minha excepção para comprar livros cujo preço normalmente me faria seguir em frente.

A The Folio Society é paragem obrigatória quando se fala de livros que são um verdadeiro investimento. Sim, os livros são caros. É verdade, mas valem cada libra gasta! E este ano andava já há vários meses a cortejar o “The Wonderful Wizard of Oz” de L. Frank Baum, que cumpria todos os requisitos para ser uma fascinante leitura natalícia, e não havia como impedi-lo de ir parar à minha meia. E já que precisava de comprar outro livro para continuar a ser membro da Folio, aproveitei para encomendar também o “Under Milk Wood” do Dylan Thomas, poeta que me tem despertado ultimamente a curiosidade.

Mas nem só de livros da The Folio Society se fez o meu Natal e, na categoria “prendas para mim próprio” lugar também para o “Toda a Mafalda”, reeditado recentemente pela Verbo, de que já vos falei anteriormente. E não podia estar mais contente!


As compras de Dezembro ficaram completas com mais uma estonteante visita ao Sr Teste, que me conseguiu dois livros raros de Nelly Sachs e Bjoernstjerne Bjoernson, Prémios Nobel dos quais já não se encontra nada nas livrarias. Consegui finalmente deitar a mão a um exemplar de “A Ceia dos Cardeais” de Júlio Dantas que, após uma breve leitura, já deixou transparecer o porquê das duras críticas de Almada Negreiros. E só para tornar tudo ainda mais perfeito, trouxe comigo mais um livro da Marguerite Duras, “Emily L.”, ficando mais próximo do meu objectivo de ter todos os seus livros publicados em Portugal, e também “A Dama de Branco e Outros Contos” de Nathaniel Hawthorne, autor que me deixou bastante bem impressionado no início do ano com o famoso “A Letra Encarnada”.


E para já é tudo. Nas próximas semanas voltaremos à temática das prendas, mas desta feita dadas por terceiros.