domingo, 30 de março de 2014

Cheiro a livro novo - Março de 2014


Março tem sido um mês interessante para os autores portugueses, com vários livros de grandes nomes a chegarem às livrarias. No espaço de poucas semanas a Tinta da China trouxe-nos “Tudo São Histórias de Amor” de Dulce Maria Cardoso, que reúne 12 contos de autora que, tendo em conta o desempenho na abertura da 1ª Granta portuguesa, prometem muito. Também a Sextante decidiu avançar com uma autora de peso e fez chegar às livrarias “Passagem” de Teolinda Gersão. E, como onde há duas há três, não é de estranhar que também a Dom Quixote tenha publicado um novo livro de Lídia Jorge, “Os Memoráveis”, mesmo a tempo das comemorações dos 40 anos do 25 de Abril, data também aproveitada pela Quetzal, que edita finalmente no nosso país “Portugal, a Flor e a Foice” de Rentes de Carvalho. Dois livros que se propõem rever os mitos do 25 de Abril. Uma verdadeira luta de editoras.

E por falar em luta de editoras, um dos grandes mistérios editoriais dos últimos tempos é a decisão da Relógio D’Água e da Presença (duas editoras em espectros profundamente opostos do mundo editorial, diga-se de passagem) de editarem em simultâneo “Doze Anos Escravo” de Solomon Northup. A sério?! Como se não houvesse livros suficientes no mundo para serem editados ou clássicos que há muito tempo desapareceram das livrarias. Sinto-me revoltado.

A Relógio D’Água prometia ter um mês interessante mas poucos livros viram para já a luz do dia, parecendo-me justo destacar “Sobre Literatura” de Umberto Eco. De resto, a Temas e Debates editou também este mês um ensaio sobre literatura que me parece muito interessante, “Génio - Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura" de Harold Bloom.

Para terminar, menção obrigatória à edição pela Presença de “Colheita” de Jim Crace, um dos finalistas da última edição do Man Booker Prize (que, a julgar pela capa, ninguém diria que não se trata de um livro de literatura light) e, pela Cavalo de Ferro, de “Gostamos Tanto da Glenda” de Julio Cortázar, um volume de contos nunca antes publicados em Portugal e que é um ponto de partida para as comemorações do centenário do autor, que se aproxima a passos largos.

segunda-feira, 24 de março de 2014

A dependência dos livros - edição Março de 2014


Este mês, graças a duas generosas iniciativas, o volume de livros que entrou na minha biblioteca pessoal foi bastante superior ao que pensava inicialmente. Por um lado, a campanha de oferta de livros da Presença valeu-me três livros, que normalmente custariam à volta de 70€, pelos quais paguei menos de 7€ em portes de envio. Excelente iniciativa esta, sem dúvida, que me permitiu finalmente comprar dois dos volumes da trilogia USA do John dos Passos e “As Meninas”, de Lygia Fagundes Telles.

A outra oportunidade que me deixou particularmente eufórico veio pela mão da Tinta da China, a respeito do lançamento do novo livro da Dulce Maria Cardoso, “Tudo São Histórias de Amor”, Quando feita a pré-encomenda do livro através do site da Tinta da China recebia-se gratuitamente um título à escolha de três opções da colecção de clássicos. Como já tinha o “O Livro da Selva”, fiquei na dúvida entre “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” e “A História de um Rapaz Mau” mas acabei por escolher este último.

Deixo-vos com a lista completa das compras do mês, mas não posso deixar de destacar o “Autismo” do Valério Romão, uma das compras que mais felicidade imediata me trouxe. Conto os dias pelo momento em que o lerei.

Autismo” de Valério Romão, Abysmo
Corre, Coelho” de John Updike, Civilização
Contos de Amor, Loucura e Morte” de Horácio Quiroga, Cavalo de Ferro
O Anão” de Par Lagerkvist, Antígona
O Grande Capital” de John dos Passos, Presença
1919” de John dos Passos, Presença
As Meninas” de Lygia Fagundes Telles, Presença
Tudo São História de Amor” de Dulce Maria Cardoso, Tinta da China
A História de um Rapaz Mau” de Thomas Bailey Aldrich, Tinta da China
O Inominável” de Samuel Beckett, Assírio & Alvim
“A Rainha Restauradora – Luísa de Gusmão” de Monique Vallance, Círculo de Leitores
“A Rainha Coleccionadora – Catarina de Áustria” de Annemarie Jordan, Círculo de Leitores

sexta-feira, 21 de março de 2014

Um poema pelo Dia Mundial da Poesia

Destino de poeta

Palavras? Sim, de ar,
e no ar perdidas.
Deixa-me perder entre palavras,
deixa-me ser o ar nuns lábios,
um sopro vagabundo sem contornos
que o ar desvanece.

Também a luz em si mesma se perde.

(in "Antologia Poética", Octavio Paz)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Em estado crítico: "A Letra Encarnada" de Nathaniel Hawthorne


Uma cadeia, um cemitério e uma roseira brava. Assim começa Nathaniel Hawthorne a história de “A Letra Encarnada”. E, numa pequena descrição de duas páginas, o essencial é dito, sem ser necessário dizê-lo palavra por palavra: na história que nos vai ser contada haverá um crime, alguém morrerá e tudo terá uma motivação passional.

Mas porquê “A Letra Encarnada”? O que levou Hawthorne a escolher um título à partida pouco claro e desinteressante? A explicação está contida na própria história e no ângulo escolhido por Hawthorne para contá-la. A letra encarnada é o símbolo que Hester Prynne se vê condenada a utilizar cozido na roupa, junto ao coração, como pena por ter cometido um dos maiores pecados de acordo com a moralidade então vigente: ter engravidado sem ter junto a si o seu marido. Hester tinha sido enviada para o Novo Mundo pelo marido, que deveria segui-la, mas de quem não havia notícias há um par de anos. Pensando que o marido teria morrido, Hester cai na tentação de amar outro homem. O que ninguém sabe é que esse homem é o padre Arthur.

Mas então, com um tema tão sugestivo, para quê este título? Porque não “O Crime do Padre Arthur” ou “O Celibatário Pecador”, algo que chocasse consciências e atraísse leitores com o chamariz do proibido? A razão é simples. O livro de Hawthorne não tem objectivos moralizantes, pelo menos não no que diz respeito ao pecado de Hester e do Padre. Eça, em “O Crime do Padre Amaro”, queria expor a atitude hipócrita e libidinosa do clero. A mensagem de Hawthorne é outra. Apenas sentimos uma atitude de crítica do autor em relação à sociedade da época e à forma como julga os comportamentos de Hester. São as convenções sociais o principal focus de Hawthorne, mostrar o quão patéticas são, mas também o quão facilmente podem ser quebradas. E por isso temos a letra encarnada na capa, para não nos esquecermos disso.

As ignomínias vividas por Hester Prynne só o são porque assim estão catalogadas. Hester não é espancada, não lhe tiram a filha, não a prendem. O seu único castigo é um acto público de condenação e o símbolo que se vê obrigada a usar. Ninguém a impede de partir para outro lugar e deixar de usar a letra. O castigo só é eficaz porque Hester se avexa em parte pelos seus actos e reconhece no conhecimento público uma fonte de vergonha. Colocando tudo em perspectiva, é quase ridículo que a vida de uma pessoa seja arruinada por ter de usar uma letra encarnada bordada na roupa!

Hawthorne é de resto muito compreensivo com os actos de Hester e de Arthur, havendo no entanto críticas veladas a Arthur, pela boca de Pearl, a criança que nasceu da união proibida, que questiona a sua atitude de não a acarinhar em público como o faz em privado, o que implicaria arcar com a responsabilidade de ser seu pai. Essa é a maior falha de Arthur, o não assumir perante todos a cumplicidade com Hester no acto cometido, deixando-a pagar sozinha por tudo. Em momento nenhum o envolvimento sexual dos dois é apresentado como algo aviltante. Pelo contrário: num dos momentos altos da história, o capítulo em que Hester e Pearl se encontram com Arthur na floresta, equaciona-se um final feliz, e que seria a partida dos três para outro país ou para junto dos indígenas, consumando assim o amor que os une longe dos olhares de quem os poderia condenar.

Numa história em que uma mulher casada engravida de um padre seria de esperar que a mulher ou o padre assumissem o papel de vilão. Mas, a haver um vilão nesta história, será o marido traído, cuja degeneração se acentua à medida que se deixa consumir pela vingança, sem nunca conseguir assumir uma importância determinante para a história. Roger torna-se mais numa manifestação do sentimento de culpa de Arthur, numa sombra insignificante mas incómoda, que assombra todos os seus passos.

“A Letra Encarnada”, editado em Portugal pela Dom Quixote na colecção Biblioteca António Lobo Antunes, é um clássico e não o é por acaso. Nathaniel Hawthorne questiona moralidades, lança uma luz sobre as motivações humanas e propõem um caminho de compreensão. Seria fácil fazer de Hester uma personagem acanhada, conformada na sua desonra. Mas Hester empunha a sua letra encarnada de uma forma quase orgulhosa porque, se acha que o seu acto merece aquela punição, em certa medida também a encara como o símbolo do sentimento que a uniu a Arthur e que as pessoas que a condenam, fechadas que estão num mundo em que as liberdades individuais são limitadas por axiomas religiosos, nunca poderão sentir. E por isso a letra encarnada é bordada por ela com requinte, como se de um adorno se tratasse. Assim esse adorno não lhe tivesse dificultado tanto a vida…

Classificação: 18/20

sábado, 15 de março de 2014

Discurso Directo: Dulce Maria Cardoso e escrever sobre os retornados


“Precisava de tempo porque não queria falar sobre a minha vida, não queria falar sobre a minha experiência. Queria propor uma reflexão sobre a perda.” (Dulce Maria Cardoso no “Ler +, Ler Melhor” da RTP2, sobre o livro “O Retorno”, editado pela Tinta da China)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Abertura da loja online da Antígona: a compra de livros enquanto irreverência


No meu Olimpo pessoal de editoras portuguesas a Antígona tem um lugar de destaque. Porquê? Porque a Antígona é uma das poucas editoras a realizar um trabalho coerente de construção de marca, sem cedências e com uma ousadia muito pouco comum num país em que os costumes se querem brandos e o silêncio é a palavra de ordem, para não incomodar ninguém.

O catálogo da Antígona é cirúrgico, com decisões tomadas por alguém que sabe que editora quer ter. E a imagem acompanha a convicção das escolhas editoriais assumidas, mas não está só: a suportá-la existe uma comunicação pensada, diferente, num tom bem-humorado, inteligente, uma comunicação que parece ser feita por pessoas e não por máquinas, sem cair em discursos a apelar a sentimentos e outros truques que tais.

E a posição da Antígona só se poderá fortalecer com uma decisão sábia: apostar numa loja online própria. E se esta é uma decisão que certamente será boa para a editora, é-o também para os leitores, que podem assim usufruir de inúmeras vantagens: livros com 10% de desconto; selecção mensal de livros em promoção com 20% de desconto; saldos permanentes, com livros entre os 3€ e os 10€; envio para o Brasil; e portes grátis para Portugal. Bom, vejamos então:  razão egoísta - livros mais baratos; razão altruísta - apoiar uma editora focada em bons livros. Cobertas que estão todas as possibilidade, que razão poderá haver então para comprar os livros da Antígona noutro lugar que não na loja online? 

Tivesse eu sabido que a loja online estava para abrir portas e não tinha comprado “O Anão” de Pär Lagerkvist, há uns dias, noutras paragens. Mas ando há já algum tempo de olho no “Da Educação das Mulheres” do Chordelos de Laclos e no “Justine” do Marquês de Sabe, dois dos livros em saldos permanentes e parece-me que os astros se alinham par que essa compra seja feita em breve…

domingo, 9 de março de 2014

O que é que a Granta tem? “Rescaldo” de Rachel Cusk



Cunfuso. Assim se descreve da melhor forma o meu estado de espírito após ler o conto de Rachel Cusk, em que o divórcio e os papéis de género são os temas principais. Na verdade o divórcio é o ponto de partida, mas é a problemática do género que assume um maior destaque, num discurso tendencialmente racionalizante mas com pitadas de arrebatamentos emocionais.

No início ficamos com a ideia que Cusk nos levará a uma visão esclarecedora e pouco óbvia do papel da mulher na sociedade moderna. Fala-nos mesmo de como o papel de mão e de dona de casa afastaram a sua mãe do seu lado feminino, a tornaram menos mulher. O conceito de mulher está então aqui associado a uma pulsão sexual e, ao reprimi-la, reprime-se a feminilidade. Faz sentido. Ou faria, se todo o restante discurso no conto não fosse contraditório e, de repente, Cusk não categorizasse a educação académica como uma experiência que masculiniza a mulher, culpabilizando a sua mãe por a ter condicionado a agir como um homem. Tenho alguma esperança que este discurso seja irónico, embora não parece sê-lo, e é de resto apenas um dos exemplos de categorizações no texto de actividades masculinas ou femininas, cujo ex libris é a referência a si e ao seu ex-marido como “travestis” porque ele estava em casa a tomar conta das filhas (tornando-se numa mulher), enquanto ela trabalhava (tornando-se num homem).

Interessante que em todo o conto não haja espaço para falar de sentimentos e de amor, mas apenas de categorias pouco criteriosas percepcionadas por uma sociedade indefinida. Fiquei com a sensação que Rachel Cusk é uma daquelas feministas de trazer por casa, que se serve das causas quando lhe é conveniente: igualdade de género nos direitos que a beneficiam, mas condição de excepção quando já não é o caso – como quando o que está em causa é a guarda das filhas e o argumento “as filhas são da mãe” é demasiado sedutor. Um momento não muito brilhante.