quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Porto Editora publica em Setembro o último livro de Saramago


Dia 23 de Setembro chegará às livrarias o último livro de José Saramago, escrito enquanto travava a sua batalha final com a morte. E é exactamente de batalhas que “Alabardas, Alabardas” falará, mais especificamente das travadas em situações de guerra, apresentando os dilemas morais de um funcionário de uma fábrica de armamento.

Saramago morreu sem que o livro estivesse terminado, pelo que para além dos capítulos concluídos, serão também apresentadas notas feitas por Saramago que lançam alguma luz a respeito do desenvolvimento que gostaria de dar ao livro. Serão incluídos também, segundo a informação avançada pela Fundação José Saramago, textos de Roberto Saviano (escritor italiano perseguido em tempos pela máfia) e de Fernando Gómez Aguilera (autor da biografia “José Saramago: A Consistência dos Sonhos”) e ilustrações de Günter Grass.

“Alabardas, Alabardas” será publicado em Portugal pela Porto Editora (poderão fazer a pré-reserva na Wook a partir de 1 de Setembro) estando para já assegurada também a publicação no Brasil, em Itália e em Espanha.

Como sabem, tenho muitas reservas quanto à publicação de obras póstumas inacabadas mas neste caso, dada a importância do tema, a existência de notas de Saramago e a minha crença de que Pilar del Rio, que tão bem tem gerido o legado de Saramago, não tomaria esta decisão se não estivesse certa dos méritos literários do material escrito, estou optimista quanto ao resultado final. Cá estaremos ansiosamente à espera, prontos para avaliar se esta foi ou não uma boa decisão.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Em estado crítico: “O Jogo do Mundo (Rayuela)” de Julio Cortázar

“(…) beijaram-se e morderam-se ligeiramente porque as suas bocas não se reconheciam, beijavam bocas diferentes, procurando-se com as mãos numa teia infernal de cabelo suspenso.”

Julio Cortázar in “O Jogo do Mundo (Rayuela)”


Lemos livros. Muitos livros. De alguns só nos lembramos do título. De outros lembramo-nos como se os tivéssemos acabado de ler. Muitas vezes esquecemo-nos de quando os lemos, dos caminhos que percorremos com eles nas mãos, do ponto em que nos encontrávamos nas nossas vidas quando abrimos as suas primeiras páginas. Mas nunca poderemos esquecer os dias vividos ao lado de “O Jogo do Mundo (Rayuela)”, editado em Portugal pela Cavalo de Ferro, da descoberta de uma nova forma de ler, diferente de tudo, percorrendo um caminho projectado por Julio Cortázar sem que ele próprio soubesse ao certo a que destino nos faria chegar.

No começo do livro há uma pequena nota, com o título “Tábua de Orientação” e é aqui que Cortázar nos informa que o livro que vamos ler será construído por nós. Estamos numa bifurcação e dois caminhos apresentam-se perante nós: podemos ler os primeiros 56 capítulos do livro pela ordem apresentada e esquecermos os restantes 99 que Cortázar apelida de “Capítulos Prescindíveis” ou, em alternativa, propõe-nos seguir uma tabela idealizada por ele, em que o livro começa no capítulo 73 e termina no 151, sendo apresentado no final de cada capítulo aquele que deverá ser lido em seguida. Como resistir a uma proposta tão tentadora, à estranheza de ler um livro por uma ordem aparentemente desordenada? Sem pensar duas vezes, abri o livro no capítulo 73 e entrei no labirinto.

Na verdade a proposta de Cortázar não é totalmente caótica e aleatória, o que a sua tabela propõe é manter a sequência dos 56 capítulos principais, colocando entre eles os capítulos dispensáveis, que vão concedendo novas luzes interpretativas para o núcleo da história.

No início encontraremos Oliveira em Paris, entretido com Maga e um grupo de amigos intelectuais. Mais tarde Oliveira estará em Buenos Aires e apenas Talita e Traveler lhe restarão. Mas falemos de Maga, a mulher que causou em Oliveira uma impressão tão profunda. Maga era um elemento deslocado naquele grupo, não lhe permitindo a sua cultura acompanhar as muitas referências atiradas entre amigos, embora demonstre interesse por conhecer tudo e perceber aquilo de que se falava. Mas se Maga desejava ter a cultura de Oliveira, este inveja-lhe a capacidade de sentir. Maga experiencia o mundo sem reservas, rendendo-se espontaneamente ao legado dos sentidos, enquanto Oliveira procura perceber o sentido de tudo, um sentido que compreende transcender a razão, mas que ele procura racionalizando. Maga vive. Oliveira pensa.

Os impressionantes acontecimentos que levam à dissolução do grupo e à partida de Oliveira para Buenos Aires são uma procura desesperada pela capacidade de sentir. Oliveira atira-se contra tudo na esperança de derrubar a muralha que se construiu entre ele o mundo e que, nesse processo, o absurdo da existência se lhe revele. E por isso regresse a Buenos Aires, a sua casa, à procura de algo indefinível, junto de Talita e de Traveler.

Nos capítulos dispensáveis Cortázar fala-nos do escritor Morelli e deparamo-nos com o seu projecto de criar um livro de ordem variável, e é como se de repente o livro entrasse dentro do livro, e os limites entre realidade e ficção estivessem em causa, prática comum em Cortázar. Morelli dá-nos luzes sobre o próprio livro que Cortázar escreve. Diz-nos que procura no livro uma espécie de resposta energética, não narrativa, mas enunciada de forma narrativa. Suficientemente claro? Talvez não, mas talvez o que o enunciado pretenda é transmitir de forma narrativa a dimensão de absurdo de que Oliveira falava e que se encontra para lá da razão, numa espécie de impulso primitivo. Impulso primitivo que também se encontra no sexo entre Oliveira e Maga. Procuraria Oliveira nesse momento uma espécie de iluminação?

Uma pérola escondida nos capítulos dispensáveis é Ceferino e a sua proposta para a organização do mundo em categorias estanques, uma hilariante passagem que quem se limitar ao essencial perderá. Mas a teoria de Ceferino não é apenas um instrumento de diversão, conservando em si uma questão profunda sobre as convenções. Não serão todas as tentativas de categorização, todos os processos de profunda racionalização ridículos por definição? Haverá assim tanta diferença entre as propostas de Ceferino e as catalogações aceites pela sociedade? Mais uma vez, Cortázar não nos dá respostas.

E também no final não nos responde. Alude-se a uma cegueira, mas será pior a cegueira de quem vive ou a visão de quem procura as grandes respostas? A cegueira é um mal ou é uma bênção? O livro termina num movimento circular, como uma fita áudio que chegou ao fim e roda infinitamente sobre si mesma. Uma alegoria da vida?

O que tem “O Jogo do Mundo (Rayuela)” de especial? Cabe-vos a vós, a cada um dos leitores descobrir, encontrar as vossas perguntas e as vossas respostas no elaborado labirinto criado por Cortázar. Um labirinto que não é um mero exercício intelectual, mas o colocar numa forma a questão fundamental, a do sentido de tudo. Se é que esse sentido existe.


Classificação: 19/20

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Em estado crítico: “Gostamos Tanto da Glenda” de Julio Cortázar


Gostar é perigoso. Gostar pressupõe ter expectativas, conceber ideais com os quais se confronta a realidade. Mas acima de tudo gostar implica um investimento, uma entrega, o que poderá constituir uma fraqueza fatal. Com uma tendência natural para se preocupar com o lado emocional, Julio Cortázar explora nos 10 contos de “Gostamos Tanto da Glenda”, editado em Portugal pela Cavalo de Ferro, as enfatuações emocionais nas suas diversas formas e as suas consequências imprevisíveis.

Gostamos Tanto da Glenda, o conto que dá o nome ao livro, deixa uma mensagem clara: o amor pode ser uma porta para actos ignóbeis, quando o objecto do amor não se comporta de acordo com o que é esperado. Assim, passamos de um grupo de fãs de Glenda, uma famosa actriz, capaz de fazer tudo para que ela seja bem-sucedida, para de repente termos um grupo disposto a matá-la em nome desse suposto amor, para que não estrague a imagem de perfeição criada para si.

Um perigo diferente é o de Orientação dos Gatos, em que é o olhar frontal de Alana, a mulher amada que, juntamente com o do gato Osíris, gera um mal-estar, que se contrapõe ao deleite sentido pelo narrador quando vê Alana admirar quadros. Por um lado há uma questão de foco: quando Alana e o gato o olham forma-se uma unidade da qual ele não pode fazer parte, uma vez que ele não se pode olhar; por outro lado, ao olhar os quadro Alana tem uma atitude reactiva, a forma como age é suscitada pelo que lhe comunicam os seus sentidos e quando o olha a ele com entrega no olhar há uma racionalização, uma intenção de lhe enviar uma mensagem. O olhar frontal de Alana é por isso uma espécie de confrontação que pode levá-lo a questionar-se. E por vezes nem um olhar é necessário, basta ceder a um desejo latente para entrarmos em terrenos minados. Em Histórias que Me Conto, a realidade da ficção é posta em causa quando o narrador descobre que a fantasia sexual que inventou com Dília, uma amiga sua e da sua mulher, aconteceu na realidade mas com outro homem. Uma partida do acaso ou uma espécie de fenómeno místico?

O que conto que foge mais a esta lógica é Texto num Caderno, em que o controlo estatístico das entradas e saídas do metro revela uma surpresa: por vezes o número de pessoas que entram é superior ao das que saem e, outras vezes, o número das que saem é superior ao das que entram. O narrador entrega-se então, mas em vez de a um sentimento, entrega-se emocionalmente à descoberta do que se passa, colocando de lado a possibilidade de haver erros de medição e desenvolvendo uma teoria baseada em factos casuísticos e pouco claros de que há uma sociedade que vive no metro. E rapidamente essa teoria deixa de corresponder a um desejo de descobrir a verdade, para se converter numa obsessão.

Cortázar brinca com o leitor, diverte-se a questioná-lo, coloca-lhe puzzles à frente e desafia-o a resolvê-los. E há dois momentos no livro, os dois contos que se elevam sobre os outros, que são bons exemplos disso mesmo. História com Aranhas começa com um simples e aparentemente inofensivo relato dos dias de férias de duas pessoas que têm como vizinhas no seu bungalow duas jovens. Há desde o início uma grande tensão sexual, mas nunca há um contacto efectivo, há noites passadas na escuridão a ouvir barulhos, há a espera de um sinal, memórias de acontecimentos passados não muito claros. E no final… uma surpresa. Um desafio à percepção.

O outro momento é Recortes de Imprensa, em que também a realidade da ficção é questionada quando a personagem principal, uma escritora, vive uma situação que descobre depois ter sido descrita na imprensa dias antes. E mais uma vez nos questionamos: terá ocorrido um fenómeno paranormal? Ou a entrega da escritora à sua escrita é tal que há elementos da realidade com os quais contacta e que inconscientemente os converte em seus?

Julio Cortázar não nos dá respostas. Lança-nos cenários e espera que retiremos deles o que conseguirmos, que sejamos nós a criar uma ordem, se é que é possível fazê-lo. Ler “Gostamos Tanto da Glenda” é por isso uma entrega à reflexão, à admiração perante o absurdo com que nos deparamos, com todos os contos a terem algo que os inscreve na nossa mente, entretidos que estamos na procura de um sentido último para tudo.

Classificação: 17/20

sábado, 23 de agosto de 2014

Discurso Directo: Julio Cortázar, o sentimental

Em 1994, passados 10 anos da morte de Julio Cortázar, Tristán Bauer homenageou o escritor com “Cortázar”, um documentário concebido como se fosse um livro de Cortázar, com múltiplos recortes que se sobrepõem na esperança de chegar a uma realidade última, um sentido para lá do sentido racional das coisas.

Excertos de entrevistas, gravações áudio feitas pelo próprio Cortázar, leituras de textos seus e até tangos que ajudou a criar, compõem esta pequena mas profunda viagem que humaniza alguém que de outra forma seria apenas palavras escritas em papéis reunidos em livro.






“A minha obra foi feita na solidão. Foi feita na pobreza. Foi feita sem o menor apoio editorial e quando os editores despertaram para os meus livros, os de Fuentes, os de García Márquez, os de Vargas Llosa, despertaram porque as precárias e difíceis primeiras edições haviam sido bruscamente lidas por uma grande quantidades de pessoas, que as passou de mãos em mãos. E os editores, que não são tontos e que existem para ganhar dinheiro, compreenderam perfeitamente que tinham de editar esses escritores. Eles não nos inventaram. Nós escreveos sós.” – Julio Cortázar

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O Centenário de Julio Cortázar


“Acreditar que a acção podia preencher ou que o somatório das acções podia realmente equivaler a uma vida digna desse nome era uma visão moralista. Valia mais renunciar, porque a renúncia à acção era o próprio protesto e não a sua máscara.”

Julio Cortázar in "Rayuela" 


Em 1914, cerca de um mês depois da 1ª Guerra Mundial ter começado, nascia Julio Cortázar, perto de Bruxelas e longe da sua Argentina. Na verdade passaria parte significativa da sua vida longe do país a que chamava casa, tendo vivido em Paris desde 1951 até ao final da sua vida, em 1984.

Cortázar é um dos nomes cimeiros da literatura internacional do século XX, integrando nas suas obras um paradigma de literatura que sintetiza uma das principais características da sociedade actual: questionar, acima de tudo questionar. Cortázar questiona a forma, questiona o leitor, questiona os limites entre realidade e ficção, questiona os limites entre as diferentes ficções dentro das suas ficções. Ao lê-lo sentimos muitas vezes que vemos uma imagem dentro da imagem, mas não nos é claro qual é a imagem primordial. A obra de Cortázar é uma obra de descoberta, de um inteligente impacto emocional, porque Cortázar não caiu na armadilha de transformar a sua obra em teórica e distante do leitor.

Apesar da sua influência, Cortázar não é um nome devidamente reconhecido pelo grande público e muito menos o é em Portugal. Aproveitando o centenário do seu nascimento, que se comemorará no próximo dia 26, vou fazer uma série de posts sobre este autor, que culminará com uma crítica a “Rayuela”, a obra-prima de Cortázar.

E celebrar Cortázar em Portugal é sinónimo de celebrar o trabalho da Cavalo de Ferro, que se tem empenhado em publicar no nosso país a obra do autor, tendo este ano chegado às livrarias “Gostamos Tanto da Glenda” e “As Armas Secretas”. Até ao momento a Cavalo de Ferro publicou de Cortázar em Portugal:

 

Deixo-vos uma sugestão: a Fundação José Saramago dedica a edição deste mês da sua revista digital, a Blimunda, a Cortázar. Para terem acesso ao download da revista basta clicarem na imagem.


Espero-vos então nos próximos dias com a minha visão sobre Cortázar. Fiquem para já com as palavras de Pablo Neruda:

“Canta Cortázar su novena de imponente sombra argentina, en su iglesia de desterrado, y es difícil para los muchos el espejo de este lenguaje, que se pasea por los días cargado de besos veloces, escurriéndose como peces para brillar sin fin, sin par, en Cortázar, el pescador que pesca escalofríos”

sábado, 16 de agosto de 2014

O que é que a Granta tem? “O Bom Déspota” de José Eduardo Agualusa


A segunda Granta portuguesa abre com um conto de um dos pesos pesados da literatura em língua portuguesa. Mas não apenas isso. Abre com um acto de coragem, ao apresentar-nos um perfil na primeira pessoa de um déspota angolano, em tudo semelhante ao José Eduardo mais célebre desse país.

Nepotismo, o controlo do povo pela pobreza e ignorância e a perpetuação no poder pela distribuição de riquezas, há neste breve conto espaço para abordar todos estes temas. Mas há um princípio exposto que se reveste de alguma nobreza: o líder não deve assumir posições, mantendo-se num silêncio que todos confunda e baralhe. A nobreza deste princípio está em partir da crença de que a coerência, ou a sua percepção, é um atributo do líder, o que tendo em conta a realidade política portuguesa, em que governantes desdizem o que disseram semanas antes, com a mesma convicção com que defenderam o que agora rejeitam, revela alguma elevação.

No final Agualusa deixa-nos reticências quanto ao futuro, dando crédito à velha máxima de que a história se repete. Muitas vezes o que cria os regimes é o que acaba por destruí-los e não há medidas preventivas que possam dominar eternamente a vontade dos povos. Realidade ou ficção?

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Em estado crítico: "Contos Completos - Acerto de Contas" de Lydia Davis

“O facto de ele não me dizer sempre a verdade faz-me duvidar da verdade do que ele em certas alturas me diz, e então tento descobrir pelos meus próprios meios se é verdade ou não o que ele me está a dizer, e algumas vezes sei que não é verdade, outras vezes não sei e nunca saberei, e outras ainda, só porque ele não pára de mo dizer, convenço-me de que é verdade, porque não acredito que ele seja capaz de repetir tão constantemente uma mentira.”

in História
 

As dificuldades de que se reveste a escrita de um conto são muitas vezes ignoradas pelos leitores que se centram apenas na comparação com o tamanho de um romance. Mas escrever uma história em poucas páginas requer uma disciplina, uma gestão absoluta do ritmo da narrativa e uma criatividade que permita impregnar aquelas poucas páginas de sentido, para que, apesar do pouco tempo que convivem com o leitor, sejam capazes de o marcar de forma indelével. Ora tudo isto é ainda mais verdadeiro quando o escritor se dedica sobretudo a microcontos e raramente se aventura para lá das cinco páginas, residindo neste facto um dos maiores méritos de Lydia Davis.

Na contracapa dos “Contos Completos” da autora, editado em Portugal pela Relógio D’Água, e no qual se insere o livro “Acerto de Contas”, afirma-se que a obra de Lydia Davis é um dos expoentes máximos da literatura americana. Não sei se essa afirmação não se revestirá de algum exagero. “Acerto de Contas” não é seguramente a última coca-cola no deserto. Diria sem reservas que Lydia Davis é uma escritora com um estilo muito próprio e acredito que seja talvez a escritora do mundo que melhor domine o género pequenos contos mas, dizendo isto, há também que dizer que muitas vezes Davis tropeça numa das armadilhas próprias deste género e que é a banalidade. Especialmente nos microcontos, é muito difícil conseguir um resultado memorável. Muitas vezes são só umas quantas linhas interessantes sobre algo muito específico que não nos fazem sentir remorsos ao virar a página. Mas quando tudo corre bem, há momentos gloriosos e “Acerto de Contas” tem os seus.

Mildred e o Oboé é um exemplo da riqueza de conteúdo que se pode conseguir com uma escrita económica. Um magnífico testemunho das inseguranças e desejos latentes de uma mulher que, condenada a uma vida imaculada, não consegue deixar de interpretar os barulhos que ouve no prédio como manifestações da sexualidade das treze mulheres que habitam o edifício. Pensa então que a sua vizinha Mildred se está a masturbar com um oboé, ou que talvez esteja a ser possuída por um tocador de oboé, ou que talvez esteja a bater no cão. A ideia de mulheres sexualmente realizadas aterroriza-a, o que a faz vê-las como predadoras que na primeira oportunidade atacarão o seu indefeso filho. E acho que, ao interpretar o conto já usei quase tantas palavras como o conto em si, o que é por si só uma prova da sua excelência.

Em registos já com algumas páginas (no máximo cerca de 10), há vários momentos muito felizes. Logo a abrir o livro, História é um relato ansioso, de frases curtas e incisivas, lidas ao ritmo de uma respiração ofegante, exprimindo as desconfianças que uma mulher tem em relação à fidelidade do homem com quem está envolvida. Revela uma espécie de lucidez alucinada, atitudes loucas baseadas numa visão de racionalização total. Sentimos em cada linha uma ânsia, uma angústia crescente. Um nervosismo que nos impulsiona a seguir e frente e a desejar desesperadamente descobrir o que se passa.

Em Notas para Uma Biografia de Wassilly o sentimento é o oposto: o de uma total inacção. Wassilly está tão submerso em si próprio, nas convenções que criou e nas potencialidades que crê estarem associadas à sua vida, que se condena a um estado vegetativo, a uma falsa sensação de ocupação, de falta de disponibilidade, quando na verdade deixa que os dias se esgotem em tarefas ridículas.

Mas para mim as duas jóias da coroa de “Acerto de Contas” são O Projecto da Casa e A Criada de Servir. O primeiro revela-nos um desejo inquieto de evasão, de lutar por um idílio pessoal que sempre parecera impossível, que leva a personagem central do conto a abandonar a vida que conquistou na cidade e a investir na compra de uma casa em ruínas no campo, que planeia recuperar. O encontro que ocorre com um caçador, que entra abruptamente na sua casa e o passa a visitar com regularidade, é uma confrontação com o lado selvagem do espírito criativo, uma espécie de instinto de realização, que perante o medo e a incerteza enfraquece e quase desaparece.

A Criada de Servir é de uma crueldade imensa. Uma mulher sem nenhum atractivo, condena-se a viver do reconforto de pequenos gestos que pensa perceber, gestos de um homem também ele sem atractivos. Tenta agradar-lhe como sabe, desempenhando empenhadamente o seu mister de criada, sem se aperceber que nunca conseguirá ser mais do que uma mobília para ele e que acabará os seus fétidos dias na companhia da mãe que odeia mas que é a única pessoa que age como se a amasse. Um retrato de um mal-estar e de uma frustração quase insuportáveis.

“Acerto de Contas” é um bom livro, cuja unidade reside numa tentativa de perseguir um lado quase psicótico das personagens, que estão quase sempre alteradas ou à beira de uma queda no precipício. Com pontos altos bastante notórios, embora com alguns contos olvidáveis e irrelevantes pelo meio, “Acerto de Contos” é uma leitura refrescante de uma escritora comprometida com o mundano, que por vezes consegue transformar em transcendente.

Classificação: 15/20

(Este é o primeiro de uma série de quatro artigos sobre “Contos Completos” de Lydia Davis, pulicado em Portugal pela Relógio D’Água. Cada artigo incidirá sobre um dos livros individuais contidos nesta colectânea, sendo o próximo artigo desta série sobre “Quase Sem Memória”.)

sábado, 9 de agosto de 2014

Discurso Directo: o cometa Matilde Campilho


“A partir do momento em que eu entro num lugar onde eu nem sequer estou no real, pode entrar quem quiser.” (no programa O Que Fica do Que Passa, do Canal Q)