domingo, 29 de dezembro de 2013

A dependência dos livros: presentes de Natal

Natal é dar e receber. Já vos falei de dar, agora é a vez do receber. E no meu caso, receber é muitas vezes sinónimo de livros. Este ano a colheita natalícia foi excelente, com três livros que queria muito ler: “Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer” do Carlos Vaz Marques, que reúne doze entrevistas publicadas na revista Ler; “A Filha do Coveiro” da Joyce Carol Oates, uma autora que tinha há muito um lugar por preencher na minha estante; e “O da Joana” do Valério Romão, que me conquistou em absoluto com o seu conto na Granta. Junto com o livro do Valério Romão veio um marcador do artista Ryan Sheffield, de que vos falei anteriormente, que faz retratos de autores famosos, acompanhados sempre de uma citação.


Mas, para além dos livros que me ofereceram, há também os que ofereci a mim próprio. Este ano decidi que o meu presente seria tornar-me membro da The Folio Society, pelo que me sujeitei ao grande sacrifício de comprar quatro livros: “Rogue Male” de Geoffrey Household, “Ballet Shoes” de Noel Streatfeild, “The Postman Always Rings Twice” de James M. Cain e “Peter Pan and Wendy” de J. M. Barrie (o livro que escolhi ler pelo Natal e de que vos falarei em breve). Não fossem os livros já profundamente bonitos, a The Folio Society gosta ainda de surpreender os seu leitores e veio com a minha encomenda, de oferta, o livro “Landscape into Art” de Kenneth Clark, um prestigiado historiador de arte que analisa nesta obra, a transbordar de reproduções a cores de obras-primas da pintura, a evolução da representação de paisagens.



 Diga-se de passagem que não trocava os meus presentes por nenhum dos gadgets disponíveis no mercado!

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Feliz Natal com os clássicos


«Os Cratchit não eram uma família distinta, nem se encontravam bem vestidos; os seus sapatos estavam longe de serem impermeáveis; as roupas eram escassas; e Peter devia já ter visto, muito provavelmente já vira, o interior de uma casa de penhores. Mas sentiam-se felizes, agradecidos, agradáveis uns para os outros e satisfeitos com a ocasião; e enquanto se iam gradualmente extinguindo, parecendo ainda mais felizes sob a luminosa aspersão do archote do Espírito, à partida, Scrooge conservou os olhos fixos neles, particularmente em Tim, até desaparecerem por completo.»


(excerto de Cântico de Natal, in “Contos de Natal” 
de Charles Dickens, Civilização Editora)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Cheiro a livro novo – Novembro e Dezembro 2013


Os meses que antecedem o Natal são por norma pródigos em novidades editoriais, aproveitando o ímpeto consumista originado pelos presentes. Não se pode dizer que tenha sido esse o caso este ano, com poucas novidades e as que existiram foram sobretudo novas edições de obras já publicadas em Portugal. De realçar a pouca actividade dos dois maiores grupos editoriais, Leya e Porto Editora, sem nenhum livro particularmente excitante editado neste período.

A novidade do final do ano e, na minha opinião, a edição mais relevante de 2013 é “Dicionário de Lugares Imaginários” de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, um gigantesco livro de 1000 páginas trazido até nós pela Tinta da China, que compendia locais fictícios famosos na literatura mundial, com direito a ilustrações. Se isto não é o presente de Natal perfeito, não sei o que o será. Mas, como se este livro não fosse suficiente, a Tinta da China editou ainda o segundo livro da colecção pessoana, “Eu Sou uma Antologia”, com organização de Jerónimo Pizarro e Patrício Ferrari, reunindo escritos de 136 autores criados por Fernando Pessoa. E para fechar com chave de ouro, há ainda "Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer", um livro com entrevistas realizadas por Carlos Vaz Marques na Ler, com alguns dos autores portugueses mais relevantes dos últimos anos (Saramago, Agustina, Lobo Antunes, M. Tavares e Dulce Maria Cardoso, por exemplo).

A única editora a competir com a Tinta da China nas novidades de final de ano é a Relógio d’Água, com duas grandes apostas já disponíveis nas livrarias. Falo das tão aguardadas edições de “Ulisses” de James Joyce, desaparecido do mercado desde que a Difel fechou portas, com uma nova tradução para português de Jorge Vaz de Carvalho, e de “Guerra e Paz” de Tolstoi, que não estava propriamente desaparecido das livrarias. Sendo fácil de encontrar a edição da Presença deste livro, que mais-valias pode ter a versão da Relógio d’Água? Para começar, menos volumes: dois em vez dos quatro da Presença. E depois, há ainda a garantia de qualidade da tradução de António Pescada, que já anteriormente tinha traduzido, de forma exemplar diga-se, “Anna Karénina”, também pela Relógio d’Água.

Por falar em clássicos, a Civilização teve a excelente iniciativa de aumentar a sua colecção Novos Clássicos, com algumas edições dignas de relevo, caso de “O Pai Goriot” de Balzac e de “Quo Vadis” do Prémio Nobel Henryk Sienkiewicz, ambas obras editadas anteriormente pela Europa-América e que mereciam novas edições. Se procuram livros bons, bonitos e baratos (menos de 10€), vejam esta colecção que vale mesmo a pena.

Mas nem só de novas versões de clássicos vive o mercado, e a Cavalo de Ferro continua a sua aposta no género conto, editando pela primeira vez em Portugal “O Barril Mágico” de Bernard Malaud, autor querido por nomes como Philip Roth e Flannery O’Connor.

E por fim, não esquecendo os ensaios, a Antígona propõe mais uma vez um livro singular, integrado na edição da obra de Aldous Huxley. “As Portas da Percepção” relata experiências de Huxley com o consumo de alucinogénios e poderá ser, sem dúvida, um presente de Natal original. Um bom presente poderia ser também o “Admirável Mundo do Novo”, editado também pela Antígona nos últimos meses, mas confesso que a capa me desmotivou e coloquei de lado o meu plano de dar a minha edição da Livros do Brasil a alguém e de comprar esta versão.


Bom, resta-nos esperar para ver o que 2014 nos trará. 

domingo, 22 de dezembro de 2013

O que é que a Granta tem? “Espelho da água” de Rui Cardoso Martins


Uma manhã normal a bordo de um cacilheiro que atravessa o Tejo, levando para Lisboa as suas hordas de trabalhadores. É assim que começa o conto de Rui Cardoso Martins, em que a normalidade rapidamente é colocada de lado quando os esforços para pescar um choco (outro choco na Granta?!) são interrompidos pelo cadáver de uma mulher a boiar nas águas do rio. Desse avistamento perturbante parte-se para um périplo por alguns dos viajantes do barco, que em breves instantes nos revelam o que lhes vai pela cabeça.

O conceito deste conto é interessante, sem dúvida, mas parece-me que a forma como as personagens foram compostas não contribui muito para o sucesso da história. Os detalhes das vidas das personagens, a forma como falam, até mesmo o tipo de personagens que encontramos naquele barco, tudo parece estar perigosamente próximo do cliché. Ao que acresce uma falta de coesão que é tanto consequência de um discurso diletante, com saltos abruptos entre discurso directo e indirecto que não conseguem tornar a leitura mais cativante, como de um ângulo não muito claro da história. Em alguns dos relatos confessionais dos passageiros, o cadáver a boiar parece ser uma ponte para os seus pensamentos, noutras nem por isso. A mulher morta e aquelas personagens estão portanto ali por acaso? Os pensamentos das personagens seriam os mesmos se não houvesse a morta? Talvez o objectivo seja só relatar uma viagem de pessoas que vão para Lisboa, numa abordagem de mera observação, sem qualquer propósito narrativo maior. Mas será relevante fazê-lo?

domingo, 15 de dezembro de 2013

Discurso Directo: George Bernard Shaw e a natureza bondosa de Mussolini


«He is condemned to go through life with that terrible and imposing expression, which really does a great deal of injustice to his kindly nature.» (George Bernard Shaw a respeito de Mussolini)

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Em estado crítico: "Fiapos de Tempo" de Ana Maria Vilhena

Ler um livro escrito por alguém que nos é querido é sempre uma experiência estranha e envolta em expectativas que esperamos que não sejam defraudadas. Mas há sempre aquele momento em que pensamos “e se o livro for mau?”, e damos a volta à cabeça, procurando comentários evasivos que não violem a nossa consciência, mas também não revelem a nossa verdadeira opinião. Felizmente não foi este o caso. Desde o primeiro momento, conhecendo o verdadeiro toque da Midas da autora deste livro, incapaz que é de produzir algo que não seja de qualidade, acreditei em absoluto nos méritos desta obra e digo-o sem reservas: não me decepcionei.

Isto para vos dizer também, respeitando a máxima que me ensinaram na faculdade e que defende que a objectividade é a explicitação das subjectividades, que não podem esperar de mim uma análise distanciada deste livro, porque me unem à sua autora os mais profundos laços de carinho e gratidão pelo muito que me ensinou sobre a escrita e a leitura. Mas que isto não retire valor às minhas considerações, porque exprimem honestamente a minha opinião.




Dizia George Steiner que o apoquentava particularmente, tomando por exemplo o período nazi, que seres humanos que cometiam actos monstruosos fossem simultaneamente profundos apreciadores de arte, com a sensibilidade que isso requer. Ana Maria Vilhena inverte um pouco esta questão e leva-nos a pensar em como é que pessoas que defendem bons princípios podem não os aplicar ao seu quotidiano. Esta questão surge na cabeça do leitor recorrentemente em “Fiapos de Tempo” perante as contradições de Jacinto Maria, um antepassado da autora e a personagem principal do livro.

Jacinto Maria é um republicano em tempos de monárquicos, que sonha com o fim dos desmandos dos Reis e dos Governos por eles apoiados. Mas a República revelar-se-á uma fonte contínua de desilusões e, aquilo que parecia ser uma panaceia, converte-se rapidamente em novos problemas. Na verdade, as diferenças em termos de liberdades entre a Monarquia e a República são bem pequenas e, por vezes, em vez de progressos assiste-se mesmo a retrocessos. Basta dizer que nas primeiras eleições da República o voto era mais restrito do que nos tempos dos reis.

Mas se as opiniões de Jacinto Maria quanto ao exercício do poder político e ao respeito pelos direitos dos trabalhadores revelam uma profunda consciência do outro, em comportamentos muitas vezes de puro altruísmo, a atitude do mesmo Jacinto Maria com a sua mulher e filhas poderá ser caracterizada de várias formas, nenhuma das quais veiculando algo que remeta remotamente para alguma forma de respeito. Francisca Luísa, a famigerada esposa, é tratada quase sempre de forma aviltante, como se fosse um ser desprovido de inteligência. Germínia, a filha mais nova, não tem melhor sorte, embora a sua irmã mais velha, Balbina, tenha direito a um tratamento mais digno. Jacinto, um homem minimamente letrado, o que era raro na altura, chega mesmo a querer privar as filhas dessa mais-valia, apenas por serem mulheres. Um dos pontos altos do livro, a cena em que Jacinto descobre que Germínia comprou uma máquina de costura, tem tanto de caricata como de revoltante: as mulheres não só não deviam ter direito à educação, como também lhes deveria ser vedado o acesso a tudo o que pudesse facilitar as suas tarefas domésticas.

A mestria de Ana Maria Vilhena está em não tomar partidos na sua narração, em adoptar uma postura quase de mera espectadora e é nessa perspectiva que a questão feminina, por exemplo, nos é apresentada. Seria muito fácil fazer de Jacinto Maria uma figura odiosa, recusando-se a percebê-lo e a explicá-lo, e apresentar as mulheres como vítimas. Mas se algo fica patente no livro é que, independentemente dos seus condicionantes, são as próprias mulheres que determinam no essencial o seu caminho. Não é à toa que Maria de Assunção, a mãe de Jacinto, tem a posição de chefe de família de facto, senhora de uma atitude firme e decidida, em nada aquém da de qualquer homem. Já Francisca Luísa é uma fraca figura, totalmente à mercê das vontades do marido, atitude que não conseguiu transmitir à sua filha Germínia que, seguindo as pisadas da avó, não se inibe de tomar iniciativas. Uma visão corajosa, a de que as mulheres são muitas vezes o agente do seu próprio destino, com a qual estou totalmente de acordo.

Outro dos principais méritos de Ana Maria Vilhena é o de, narrando uma história que abarca um longo período histórico (desde o primeiro quartel do séc. XIX até quase à década de 40 do séc. XX), conseguir incutir no texto uma vertente informativa sobre cada período, nomeadamente em termos políticos e de estilo de vida, de uma forma natural, sem cortar a história nem tornar a leitura maçuda. Depois de uma experiência negativa com o uso de jornais num romance (Saramago em “O Ano da Morte de Ricardo Reis” – sou um fervoroso adepto de Saramago, mas não deste livro), confesso que fiquei de pé atrás quando percebi que a leitura dos jornais seria recorrente no livro, temendo deparar-me com páginas e páginas de incursões declamatórias por títulos de jornais, mas o resultado final superou por completo as minhas expectativas, sendo as referências acompanhadas de comentários de Jacinto Maria ou introduzidas em conversas, de maneira a tornarem-se unas com a narrativa.

Através de “Fiapos de Tempo”, a meio termo entre a biografia e o romance, revisitamos as memórias dos nossos avós e dos seus antepassados, reconhecendo-os nas personagens e comportamentos tão tipicamente alentejanos que nos surgem em cada página. De uma escrita natural, que na sua aparente simplicidade esconde a mestria de quem fez da língua portuguesa a sua vida, a leitura de “Fiapos de Tempo” faz-se com o mesmo prazer com que lemos os clássicos da nossa literatura. Espero que seja o primeiro de muitos livros!


Sendo a edição deste livro assegurada pela Vírgula, se o quiserem comprar podem fazê-lo no site do Sítio do Livro ou na livraria Leya na Barata, em Lisboa.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

5 livros para oferecer no Natal

Um livro é a melhor prenda que se pode dar a uma pessoa. Bom, talvez haja algo melhor… vários livros. Têm dúvidas quanto à veracidade desta afirmação? Ora vejamos, sem ser um livro, que outra prenda podem dar a alguém que possa passar de geração em geração sem perder o interesse, que proporcione várias horas de prazer, que permita conhecer novos locais e pessoas sem sair do mesmo lugar, que seja de arrumação fácil e tenha um preço em conta? Por isso, não batam mais com a cabeça nas paredes a pensar nos presentes que ainda vos falta comprar, corram para uma livraria e resolvam o assunto de uma vez! Precisam de sugestões? Os vossos desejos são ordens.


Um presente para crianças



Hans Christian Andersen escreveu alguns dos contos infantis mais memoráveis da história da literatura. “A Princesa e a Ervilha”, “A Sereiazinha” (também conhecida como “A Pequena Sereia”), “O Valente Soldadinho de Chumbo” ou “O Patinho Feio” dizem-vos alguma coisa? É claro que sim. Andersen tem uma forma muito particular de criar histórias para crianças, assegurando-se que nem tudo são relatos de felicidade e de um mundo sem problemas. O mundo não é assim, logo os contos também não o podem ser, para que as crianças possam encarar as dificuldades futuras de cabeça erguida. E assim tem sido, geração após geração, com as personagens de Andersen a povoarem as memórias de infância de todos nós. Todo este universo em "Contos de Andersen", numa lindíssima edição de capa dura da Relógio D’Água.


Um presente para quem gosta de clássicos



Falar em contos de Natal é sinónimo de falar de Charles Dickens e de “Um Cântico de Natal”, a emblemática história de Ebenezer Scrooge, um velho avarento e rezingão, que na véspera de Natal é visitado por três espíritos que o farão ver a vida com novos olhos. O segredo de Dickens é perceber que há uma melancolia intrínseca ao Natal, que anda de mãos dadas com o desejo de estarmos com aqueles que mais amamos. Não esperem por isso histórias leves e divertidas, porque há lições para serem aprendidas e Dickens é a melhor pessoa para as ensinar.

Tenho duas edições de “Contos de Natal” em português: uma da Civilização Editora e a outra da Guimarães. Os contos incluídos em cada uma são diferentes, embora se encontre em ambas “Um Cântico de Natal” e “As Vozes dos Sinos” (“Os Carrilhões”, na edição da Civilização). Se quiserem oferecer uma edição mais bonita, optem pela da Civilização. Mas se quiserem a que tem os melhores contos, então terão de comprar a da Guimarães que, para além dos contos já mencionados, tem ainda outros dois, um dos quais “As Receitas do Dr. Marigold”, um produtor instantâneo de lágrimas.


Um presente para quem só lê grande autores



Se gostam de ler e nunca ouviram falar de J. M. Coetzee é porque algo de muito errado aconteceu. Coetzee é um autor sul-africano, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2003, conhecido por um estilo de escrita económico e assertivo. “A Idade do Ferro” é um exemplo disso mesmo. Em menos de 180 páginas Coetzee apresenta-nos o confronto de uma mulher idosa a morrer de cancro com as realidades do apartheid, regime a que sempre se opusera, mas cujo lado mais negro era para si desconhecido. Quem lê o livro nunca esquecerá o relato de uma noite em particular, em que a personagem principal é acordada a meio da noite e arrastada para uma enervante viagem cujo infeliz desfecho se antevê em cada linha. Um livro obrigatório, editado pela Dom Quixote.


Um presente para os fãs de literatura portuguesa



Muito se tem falado nos últimos anos nos novos autores portugueses. E quase sempre se fala em homens, deixando por mencionar um nome incontornável, que editou nos últimos anos um livro capaz de ombrear com o que de melhor foi escrito em português. Falo de Dulce Maria Cardoso e de “O Retorno”, um livro que nos apresenta a visão de um adolescente sobre a descolonização. Confesso que o tema não me diz muito e de início tive algumas dúvidas de que esta leitura seria interessante para mim. Mas o cunho pessoal que Dulce Maria Cardoso inscreve na história, em que a descolonização interessa pelas consequências que tem para Rui e para a sua família, e não enquanto acontecimento por si só, tornou a leitura deste livro numa experiência muito intensa.

Incomodou-me um pouco a forma como Rui fala dos africanos que, digamos, não é propriamente abonatória nem respeitosa, mas essa é uma das provas da excelência de Dulce Maria Cardoso: a não necessidade de criar personagens perfeitas, conseguindo que nos identifiquemos com as pessoas, sem que nos identifiquemos com as suas opiniões. Um clássico para as gerações futuras, com a chancela da Tinta da China.


Um presente para quem só lê não ficção



As biografias históricas estão na moda. Ou melhor, as biografias romanceadas. Há por isso que prosseguir com cuidado nesta área ou corremos o risco de levar para casa uma história que de real só tem o esqueleto, preenchido com os devaneios românticos de escritoras de qualidade duvidosa. Mas há, felizmente, muitas biografias escritas por historiadores conceituados. Um bom exemplo é “Catarina de Áustria: Infanta de Tordesilhas, Rainha de Portugal” de Ana Isabel Buescu, um relato rigoroso e envolvente da vida da mulher de D. João III, uma personagem com um papel fundamental na aproximação de Portugal a Espanha, que viria a culminar com a anexação do nosso país ao império de Filipe II.

Buescu abre-nos as portas para a infância de Catarina, passada em clausura com a mãe, Joana a Louca, filha dos Reis Católicos, que após a morte do marido, Filipe o Belo, percorre parte do país numa procissão fúnebre em que, segundo as lendas, o caixão era aberto todas as noites para que Joana pudesse rever o seu amado. Trazida para Portugal para se casar com o seu primo direito, Catarina terá muitos filhos, mas apenas dois chegarão à adolescência, e ambos serão casados com os seus primos direitos, cumprindo a tradição de consanguinidade dos Habsburgo, que neste caso daria origem a duas figuras trágicas: Dom Sebastião e Dom Carlos. 

Mas se pensam que Catarina foi apenas uma figura decorativa, estão muito enganados. O seu papel no governo do país foi fundamental, num período em que Portugal se via governado por um monarca que não se pode dizer que fosse brilhante. Coube a Catarina e ao Cardeal D. Henrique prepararem D. Sebastião para governar, tarefa que se revelaria impossível, incapazes que foram de conter os ímpetos de um jovem rei, que apenas tinha quatro bisavós, em vez dos oito habituais.

Uma biografia à prova de bala de um dos períodos mais importantes da História de Portugal e de uma das rainhas mais interessantes da nossa monarquia. Entretenimento e cultura garantidos nesta edição da Esfera dos Livros.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A dependência dos livros: edição Novembro de 2013


Com 40€ euros apenas pode-se comprar muitos livros. Com esse orçamento consegui este mês juntar à minha biblioteca oito obras. É verdade que tive um vale de 10€ da Fnac, mas um vale tem pouco valor se não o soubermos rentabilizar, missão que cumpri ao quase conseguir comprar dois livros com esse modesto pecúlio (tive de fazer o sacrifício de pagar do meu bolso 2€ e pouco). Mas tirando o vale, qual foi o meu segredo? Muito fácil: uma ida à Fyodor Books (que me rendeu quatro livros por 9€), uma mega promoção na Fnac (obras do Italo Calvino com 50% de desconto) e uma grande descoberta (o primeiro volume do teatro do Prémio Nobel Harold Pinter, editado pela Relógio D’Água, a apenas 5€, também na Fnac). A estas aquisições juntaram-se ainda o 2º volume da Granta portuguesa, comprado na Bertrand, e um dos volumes das obras completas do Bernardo Santareno, que a Pó dos Livros Vintage me conseguiu arranjar.

Aqui fica a lista completa:

Granta 2 – Poder” (Tinta da China)
“Paula” de Isabel Allende (Mil Folhas)
“Catarina de Médicis” de Balzac (Portugália Editora)
“Os Manuscritos de Jeffrey Aspern” de Henry James (Relógio D'Água)
“Tereza Batista Cansada da Guerra” de Jorge Amado (Planeta DeAgostini)
“Obras Completas - 3º Volume” de Bernardo Santareno (Caminho)
As Cidades Invisíveis” de Ítalo Calvino (Teorema)
Teatro I” de Harold Pinter (Relógio D'Água)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Rentes de Carvalho com os portugueses

A Joana Ribeiro anda há 2 anos a falar-me de Rentes de Carvalho, não poupando elogios. E assim foi crescendo em mim uma vontade de o ler, vontade que no entanto ainda não se concretizou. Foi então que há cerca de duas semanas, a propósito do Grande Prémio da Crónica APE que Rentes de Carvalho recebeu por “Mazagran”, decidi ressuscitar um velho projecto: obrigar a Joana a escrever um post. Deixo-vos assim com o primeiro guest post do Sentido dos Livros, esperando que este seja o primeiro de muitos.


A primeira vez que ouvi falar de José Rentes de Carvalho foi há pouco mais de dois anos e logo aí, ignorando por completo o seu universo, fui apanhada de surpresa pela adjectivação forte com que o caracterizavam: "mestre".  De início ainda pensei ingenuamente tratar-se de um desses novos nomes da literatura contemporânea portuguesa sobre os quais se criam cultos, tal era o entusiasmo com que falavam da melhor descoberta dos últimos tempos.

Antes de mencionar as minhas duas experiências com a leitura de Rentes, gostava só de fazer este parêntesis sobre alguns motivos extra-literários que me levam a sentir especial carinho pela figura. Digamos que sou susceptível às circunstâncias pessoais de quem escreve as histórias que eu leio. Pois estamos perante um homem que já ultrapassou os oitenta anos, que distribuiu uma vida longa entre São Paulo, Rio de Janeiro, Nova Iorque, Paris e Amesterdão, que consta ter sido apresentado pela rainha Beatriz ao presidente Sampaio (que não sabia quem ele era?) e que ainda hoje viaja de carro entre Trás-os-Montes e a Holanda umas cinco vezes ao ano. Que continua a escrever e finalmente a ser publicado, com o reconhecimento devido, entre os portugueses – para quem sempre escreveu os seus livros, à excepção de “Com os Holandeses”.
                                                                                      
Comprei então na altura “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” e atirei-me a ele como em busca do Santo Graal. Confesso que inicialmente tive um desapontamento instantâneo, porque não tinha percebido que se tratava de um livro de contos e talvez ainda estivesse sob o 'mindset’ pedrosiano que reserva apenas e só ao romance a categoria de grande literatura. Talvez Rentes tenha sido o primeiro a ajudar a desfazer essa barreira. Mas não só: terá também sido com Rentes que comecei a redescobrir o prazer incomparável de ler prosa bem escrita na língua portuguesa. Admito que as histórias de “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” possam não apelar a toda gente. Reportam-se a maioria das vezes às décadas do pré-25 de Abril, relatos ficcionados sempre numa primeira pessoa que parece ir diferindo vagamente de uma história para outra (ou talvez não), cujas peripécias parecem confundir-se com as que o próprio Rentes terá vivido ou ouvido contar, num tom confessional e de grande transparência perante o leitor. Com uma linguagem muito próxima da oralidade que se revela fonte inesgotável sobre costumes, manhas, expressões, etiquetas. Poderia destacar vários contos, mas escolho para meu favorito um que faz essa síntese entre a mundividência do homem feito nas megalópoles e a simplicidade rústica das terras do norte de Portugal, dois pólos que perpassam todo o livro. Em “O Enterro de Meus Pais”, lemos sobre a longa e tortuosa viagem de um português, de Amesterdão até uma aldeia perdida nos confins transmontanos, para o funeral do pai. Será também, perante o fundo significado dos rituais de comunidade e luto, a constatação súbita de uma incapacidade a roçar o infantil e da «consciência da própria insignificância». Cito também com curiosidade a observação final de “O Incêndio de Lisboa”, em que o emigrante, sempre nostálgico da juventude vivida no Chiado, regressa a Lisboa de propósito para ver o que resta do incêndio nos armazéns e concluir que «os escombros parecem-me ainda mais terríveis e desesperados, ao mesmo tempo símbolo e sinal de mau agouro num país onde, mau grado a democracia recuperada, a vida da maioria continua a ser uma longa espera imponente e triste entre coisas que apodrecem e coisas que ardem».

Extremamente divertida foi a leitura de “Com os Holandeses”, que comprei pouco tempo depois de ter viajado por diversas cidades e vilas holandesas. Mesmo considerando as inevitáveis mudanças ocorridas desde a publicação original em 1971, reconheci com deleite os diversos choques e estranhezas que um meridional sofre às mãos de um povo fanático pela organização, a eficiência e o lucro, naturalmente sensaborão e avesso a espontaneidades - apesar de tudo ter para que a vida lhe corra doce, desprezador da culinária como algo mais do que a satisfação de uma necessidade, suspeitoso de tratos delicados e subtilezas (que pretende este?), e por aí fora. Sorri quando reconheci, entre outros, os «croquetes insípidos e os sacos de batatas fritas do automatik da esquina» com que os jovens que vão jantar fora se contentam. E o aparto total de afectos entre pais e filhos? Só me lembra a minha mãe quando diz, com o desconsolo de alma português, que na Inglaterra onde o meu irmão está emigrado, e que ela pouco ou nada conhece, eles não sentem a família como nós. Eis o retrato da típica mulher holandesa que alugou o quarto a Rentes de Carvalho e que anos mais tarde recordava tê-lo tratado como mãe:

«A Holanda nesse tempo só ia de férias para onde lhe garantissem as batatas cozidas e o estufado nacional, e os meus temperos e óleos agrediam o nariz da dona como murros. Vinha inspeccionar o azeite, o colorau, o alho, sem nela pegar examinava a folha de loureiro, tudo venenos voláteis que espalhados pela casa lhe punham a saúde em perigo. Abria as janelas e informava os vizinhos da minha culpa, porque também eles se doíam. Obrigou-me à promessa de não fazer fritos. Reduziu-me o fumar, porque o tabaco amarelece as paredes, os cortinados, levantando assim despesas de pintura e de lavagem. Pediu-me que não fizesse barulho no corredor, que não entrasse tarde, não lesse de noite, me levantasse cedo.»

“Com os Holandeses” e outros títulos de Rentes de Carvalho foram, ironicamente, grandes êxitos no país que o acolheu. Em Portugal só nos resta recorrer ao ditado: mais vale tarde do que nunca.

Por Joana Ribeiro


Livros de J. Rentes de Carvalho publicados pela Quetzal:


terça-feira, 26 de novembro de 2013

"E a Noite Roda" vence o Grande Prémio do Romance e da Novela APE



Sinopse do livro


Ana e Léon conhecem-se em Jerusalém na véspera da morte de Yasser Arafat. Aí começa uma história que atravessa várias cidades e paisagens, da Faixa de Gaza à Mancha de Quixote, enquanto o mundo exterior se vai fechando num quarto sem saída.

«Toda a praça roda à minha volta e tu és um buraco negro. Então o sol dá-te em cheio. Estás encostado à fonte, depois da estátua de Giordano Bruno, que há 400 anos foi queimado por dizer que nós é que rodamos à volta do sol. Fumas uma cigarrilha, chamas-te Léon. És um desconhecido e és tu. Qual deles vais ser?»

«E a Noite Roda» é o primeiro romance de Alexandra Lucas Coelho, tendo sido editado pela Tinta da China.


Curiosidades sobre Alexandra Lucas Coelho:


Correspondente do Público no Brasil e autora do blogue Atlântico-Sul.


Outros livros da autora:


Oriente Próximo (Relógio D’Água)
Viva México (Tinta da China)
Vai, Brasil (Tinta da China)
Caderno Afegão (Tinta da China)

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Reler Ondjaki



“Entrou na igreja com um passo miúdo, sem fazer barulho. Era de manhãzinha e já tinha acontecido a primeira missa. Respirou o ar que lá estava, sentiu uma delicada religiosidade penetrar-lhe os pulmões e o coração. A beleza da arquitectura, a luz filtrada pelos vitrais, a manhã e o momento, a ausência do padre, fizeram-no começar o assobio. Descobriu, ao fim da primeira música, que se tratava de um dos melhores sítios do mundo para assobiar melodias.” 

Em "O Assobiador" de Ondjaki


Quando foi anunciado que Ondjaki tinha vencido o Prémio Saramago 2013, com o livro “Os Transparentes” (editado pela Caminho), preparei-me para escrever sobre este autor, e não em termos elogiosos. Em tempos a Visão fez uma colecção a que chamou Frente e Verso e que reunia, de cada um dos lados, um livro, uma obra em prosa e outra em poesia de um mesmo autor. Na altura comprei por acaso a revista que tinha o livro de Ondjaki, com “O Assobiador” e “Há Prendisajens com o Xão”. Não fiquei maravilhado. A prosa deixou-me indiferente e a poesia, com aquele hábito comum a outros autores africanos de inventar novas palavras, marcou-me pela negativa, ao ponto de nem sequer considerar dar uma segunda oportunidade ao autor, como habitualmente faço.

E assim, Ondjaki saiu da minha vida. De vez em quando ouvia falar nele e pensava sempre no livro de poesia que tanto me desagradou. Com o anúncio do prémio e a preparação do artigo deparei-me com algo estranho: não me lembrava de absolutamente nada de “O Assobiador”. Como o livro é bastante pequeno decidi relê-lo e tive uma agradável surpresa quando percebi que estava a gostar bastante. Não se pode dizer que seja uma grande obra, nem um romance incontornável mas, na sua simplicidade, “O Assobiador” consegue recriar um universo que por vezes nos traz à memória Jorge Amado. Um grupo de personagens peculiares, que testemunham episódios místicos que fogem à sua compreensão, tudo motivado pelo poder metafísico de um assobio. Muito interessante, sem dúvida.

Mas se me surpreendi com um dos livros, confirmei também os meus sentimentos em relação ao outro. Não se pode dizer que a poesia de “Há Prendisajens com o Xão” seja inspirada. Há demasiados jogos fonéticos, demasiado empenho em criar elementos de interesse na forma, que nos tenta distrair de um conteúdo pobre. Não recomendo.


Retiro desta experiência um interesse que tinha perdido por Ondjaki e o desejo de ler “Os Transparentes”, na esperança de ver os sinais auspiciosos que encontrei em “O Assobiador” adquirirem um maior relevo. De facto, o mesmo livro, lido em diferentes momentos, pode ser visto de uma forma totalmente diferente.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Recordar Doris Lessing


O momento em que um grupo de jornalistas anuncia a Doris Lessing que acabou de ganhar o Nobel da Literatura é um clássico, uma inesgotável fonte de diversão. “Oh Christ!” diz Lessing, como quem diz “Isto agora é que não vinha nada a calhar! Se eu soubesse não tinha ido às compras e tinha-me arranjado um bocadinho melhor”. A surpresa de Lessing era de resto bastante representativa do sentimento de quase todo o mundo literário.
  
Há uns meses li um artigo na New Yorker que vos recomendo vivamente, intitulado “Doris Lessing and the Perils of the Pseudonymous Novel” e que, a respeito da revelação de que J. K. Rowling tinha escrito um livro usando um pseudónimo, recorda um feito semelhante de Doris Lessing, que apresentou “The Diary of a Good Neighbour” a uma editora como sendo a primeira obra de Jane Somers. O livro foi absolutamente dilacerado por um jovem leitor contratado pela editora (o penitenciado autor do artigo, importa referir), facto que na altura gerou muita polémica. O que levanta muitas questões sobre os méritos próprios dos livros e a forma como o prestígio de um autor condiciona a crítica, mas isso será tema para aprofundar noutra altura.

Agora que Doris Lessing morreu, momento propício a reflexão, não deixa de ser importante referir que a edição das obras desta autora em Portugal tem sido errática e estranha, estando dispersas por várias editoras (Presença, Ulisseia, Europa-América, Cotovia…) e sem que"The Golden Notebook", o livro mais importante da autora, tenha sido publicado. 

Quanto à minha relação com Lessing, até ao momento comprei dois livros seus, “O Sonho Mais Doce” editado pela Presença e “Gatos e Mais Gatos” da Cotovia, mas confesso que ainda não li nenhum, pelo que não posso defender a sua qualidade literária, embora tenda a acreditar que um autor que ganhe o Nobel tem de ter qualidade (teoria que acidentes de percurso, como Herta Müller, me levam a questionar). Mas pode ser que alguma editora portuguesa se lembre entretanto que “The Golden Notebook” existe e nos surpreenda, compelindo-me a ler Doris Lessing com urgência. Será?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Discurso Directo: O livro da vida de Rentes de Carvalho


“Eça de Queirós escreveu guiões de cinema antes de haver filme.” (Rentes de Carvalho no programa "Ler +, Ler Melhor" da RTP2)

Rentes de Carvalho foi o vencedor deste ano do Grande Prémio da Crónica da APE (Associação Portuguesa de Escritores) com o livro "Mazagran", editado pela Quetzal.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Desbloqueadores de conversa sobre literatura: O Mia Couto ganhou o Prémio Neuquê?!


Há umas semanas 99% dos portugueses nunca tinham ouvido falar no Neustadt. Mas tudo mudou de figura na semana passada quando Mia Couto foi anunciado como o vencedor deste ano do Prémio, e agora a percentagem de desconhecimento deverá ter descido para os 90%. Sim, porque no caso do Neustadt o nível de prestígio é directamente proporcional à não divulgação do prémio, pelo menos fora dos EUA.

Mas afinal de onde saiu o Prémio Neustadt? Bom meus caros, tenho a dizer-vos que também eu cobri a minha cara com vergonha quando, há uns meses, o descobri e me apercebi que estava perante o segundo prémio literário internacional mais importante. Sendo um prémio concedido pela obra e não por um livro em específico, o âmbito do Neustadt é muito semelhante ao do Nobel: são elegíveis escritores de todas as nacionalidades, sejam ficcionistas, poetas ou dramaturgos, havendo no entanto o condicionante de que parte significativa da sua obra tem de estar traduzida em inglês. Mas em termos de processos de selecção o Neustadt aproxima-se mais do Booker, sendo para cada edição nomeado um júri pelo Director Executivo da World Literature Today (o único membro permanente) e cada membro sugere um candidato, formando-se assim uma shortlist que servirá de base às deliberações que decorrem na Universidade de Oklahoma.


Até ao momento o Prémio Neustadt foi atribuído a 22 escritores, 4 dos quais mulheres, 4 dos quais vencedores também do Nobel da Literatura. Mia Couto foi o segundo lusófono premiado, tendo o prémio sido concedido anteriormente o brasileiro João Cabral de Melo Neto. Portugueses só mesmo na shortlist, tendo sido nomeados Saramago (em 2004), Lobo Antunes (em 2002) e Alberto de Lacerda (em 1980) – serei o único a nunca ter ouvido falar em tal pessoa?

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Em estado crítico: "Fugas" de Alice Munro


A vida tem uma forma incontrolável de nos afastar do nosso potencial. Uma força violenta e indestrutível que nos arrasta para caminhos que não são aqueles que queremos percorrer, sem que nada possamos fazer para o evitar. Alice Munro percebe isso melhor que ninguém, a crueldade de vermos desde cedo os nossos planos comprometidos, porque por muito que corramos, nada mais encontraremos do que aquilo que nos está reservado. E essa é uma moral que percorre os oito contos que compõem “Fugas”, editado em Portugal pela Relógio D'Água.

Munro ilustra o despedaçar das expectativas pela justaposição de extremos: em muitos contos, a um início promissor, na juventude, em que se revelam possibilidades, segue-se de imediato a velhice, e a percepção de que as possibilidades são geralmente pontos de interrogação para os quais não há resposta prevista. É o que acontece em “Truques”, por exemplo, em que a jovem Robin crê que a solução para uma vida que se adivinha ser dedicada a cuidar da irmã doente está num homem que conhece numa ida ao teatro. Por muito que a vontade de Robin de mudar o curso do seu destino seja grande, não o é o suficiente para ultrapassar o choque de um encontro inesperado. E passados anos Robin encontrar-se-á onde não queria estar, duramente consciente da vida que ficou por viver.

Também em “Forças Ocultas” há essa passagem abrupta do tempo. Numa página temos a impetuosa Nancy, cheia de planos e de desejo de partilhar a vida com o homem que ama. Na página seguinte a Nancy que se nos apresenta é uma derrotada, conformada com uma proximidade com o marido que nunca será alcançada e confrontada com o efeito ainda mais nocivo do tempo sobre aqueles com quem partilhou um período tão excitante da sua vida.

Mas nenhum exemplo será melhor do que o da trilogia “Acaso”/”Em Breve”/”Silêncio”. Começamos a ler “Acaso” sem a noção de que voltaremos a encontrar Juliet nos contos seguintes e, por isso, habituamo-nos à ideia de perdê-la dali a poucas páginas, enquanto acompanhamos as suas viagens rumo ao desconhecido, numa procura ansiosa pela mudança. Quando “Em Breve” começa, reencontramos Juliet passados poucos anos e percebemos que tudo se conjugou para que aquilo que desejava se concretizasse. Mas em “Silêncio”, 20 anos depois, o caminho bem sucedido revela as suas agruras e Juliet é atacada por onde menos espera. Aquilo que aconteceu nesses 20 anos é-nos eventualmente contado, mas o choque entre “o que deveria ser” e “o que é” é vincado pelo impacto inicial. 

Esta trilogia é de resto um dos exemplos mais notáveis dos talentos de Munro. A forma como discretamente as três histórias se interligam, como um simples acontecimento num dos contos nos dá uma chave para algo que acontecerá no futuro, fez-me lembrar a Trilogia das Cores do cineasta Krzysztof Kieslowski. Não é por acaso que Christa é mencionada em “Acaso”, tal como a discussão com o pastor Don em “Em Breve” também não é inocente. Mas talvez o facto mais interessante destes três contos seja aquilo a que não assistimos em “Em Breve”, por estarmos focados em Juliet e não podermos olhar para o que passa noutras paragens, e que só ficaremos a saber em "Silêncio". Uma teia primorosamente tecida.

Todos os contos de “Fugas” são excelentes. Talvez o menos bem conseguido seja “Forças Ocultas”, pela mistura de formatos no início (diário, depois narração, depois carta, depois narração) e porque há algo na história que simplesmente não funciona muito bem. Mas perante a qualidade do que lemos até ali, é com prazer que acompanhamos estas 50 páginas finais, mesmo que não sejam tão boas quanto o resto.

Por muito que tenha gostado dos contos de Juliet, a história que mais me marcou foi a de “Fugida”, pela riqueza de imagens que Munro usa e a forma decidida como constrói uma relação perversa entre Clara, Clark e Sylvia, envolvendo o leitor deste o início num ambiente de ansiedade, com um sentido de perigo iminente. A forma como a cabrinha Flora é utilizada na história e a incerteza dos últimos parágrafos do conto são um exemplo do que uma escritora genial consegue fazer com tão pouco.

“Fugas” é um livro surpreendentemente bom, uma ode às potencialidades do conto, tantas vezes visto com um género menor. Mas mais que isso, “Fugas” é o testemunho do talento de uma escritora que permanecerá por muitas gerações como uma referência. E quem pensa que as histórias de Munro são delicodoces e inocentes está redondamente enganado. Munro habita o mais complexo e perigoso dos mundos, o da vontade humana, uma vontade que muitas vezes é apenas isso, uma vontade.


Classificação: 18/20

O que é que a Granta tem? “Diário de um fumador” de Simon Gray



Equilíbrio. A boa escrita é um jogo de equilíbrio, um tapa e destapa constante que envolve o leitor, proporcionando-lhe uma viagem emocional, e não apenas  a leitura das palavras que alguém escreveu. Seria demasiado fácil para Simon Gray apresentar-nos um relato dramático da doença e dos inconvenientes da velhice, ainda por cima no formato de diário, tão convidativo a um tom excessivamente confessional e frequentemente indulgente. Mas Simon Gray não quer lágrimas, se algo o move é a partilha das histórias e dos pensamentos que ainda tem em si.

A doença e a velhice estão lá, mas quase sempre vivenciadas por outras pessoas: Harold Pinter, por exemplo (sim, estamos a falar do vencedor do Prémio Nobel da Literatura), ou um homem cujas peripécias Simon acompanha ao longe, durante as férias, e a que carinhosamente chama o “Sr. Alzheimer”, embora no final comece a ter dúvidas que ele tenha de facto Alzheimer. Na preocupação com a doença de Harold Pinter percebe-se um efeito espelho, uma preocupação consigo próprio e com a doença que o assombra, mesmo que inconscientemente, ou não fosse ele um fumador convicto.

Pelo meio há histórias de infância, algumas melancólicas (o tempo passado na casa dos avós), outras divertidas (a obsessão pela literatura de laivos eróticos de Hank Janson). Há também teorias sobre a importância histórica das hemorróidas, silenciosos conflitos com outros hóspedes pela conquista do melhor lugar no areal do hotel e breves momentos em que o cansaço e um sentimento de derrota se apoderam da escrita.


E é nesta gestão daquilo que nos conta que se revela a excelência de Simon Gray, que domina como ninguém a técnica do diário, à qual confere um registo de oralidade que torna a leitura ainda mais envolvente. Na verdade não estamos a ler algo, estamos a conversar com um amigo, um amigo com muito para contar. Obrigado Granta.

sábado, 9 de novembro de 2013

Os PEN do ano VI: "Groto Sato" de Raquel Nobre Guerra (Prémio Primeira Obra)


Pura


esta gente que colhe água para derramá-la
compassivamente sobre a chaga
esta virtuosa carraça pública
com redentor cigarro público também
esta solidão assediando cretinos e sábios
esta deserta implausível cartada
grande força erguida a prumo

esta gente esta imperial e sopa à frente
esta gente que se levanta de peito e escreve
para não matar ninguém

(poema retirado de “Groto Sato” de Raquel Nobre Guerra, Mariposa Azual)

Os PEN do ano V: "Travessa d'Abençoada" de João Bouza da Costa (Prémio Narrativa)



Sinopse do livro:


Uma criança autista escuta os sons de dois corpos entregues ao sexo e convoca os seus deuses contra a derrocada do tempo. Um tradutor apropria-se, coxeando, da sua cidade, enquanto a música inunda a noite e a sua mulher se debate com a memória. Um velho preso no labirinto da raiva enfrenta a morte caído numas escadas. Pessoas de uma pequena travessa de Lisboa, vinte e quatro horas da vida no mundo.


Curiosidades sobre João Bouza da Costa:


Carteiro, limpador de vidros, vendedor de vinhos, pintor de cenários de ópera, professor, tradutor e intérprete, João Bouza da Costa é o verdadeiro homem dos sete ofícios, ao qual se adicionou um oitavo, o de escritor, e ainda por cima escritor premiado. “Travessa d’Abençoada”, publicado pela Sextante, é o seu primeiro romance.



João Bouza da Costa sobre “Travessa d’Abençoada”:




sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Os PEN do ano IV: "O Cinema da Poesia" de Rosa Maria Martelo (Prémio Ensaio, também)


Uma breve introdução ao livro:


«Os ensaios reunidos neste livro constituem diferentes tentativas de aproximação aos processos de fazer imagem na poesia moderna e contemporânea. Embora trabalhem obras e questões diferenciadas, todos incidem sobre formas de conceber e articular as imagens na poesia, ou sobre os modos como o texto poético se pensa em diálogo com outras artes da imagem, especialmente o cinema.
[...]
 Ao acentuar a visualidade e o visionarismo das imagens verbais, ou a sua tensão e rapidez, a poesia de tradição moderna apresenta-se muitas vezes como uma espécie de cinema, uma arte na qual o fluxo das imagens desempenha um papel determinante. «O cinema extrai da pintura a acção latente de deslocação, de percurso. Tome-se um poema: não há diferença», escreveu Herberto Helder. Como pensar esta similaridade, esta convergência? Em que consiste o cinematismo da poesia? Os autores estudados neste livro encaminham-nos para algumas respostas.”
(excerto do preâmbulo de “O Cinema da Poesia” de Rosa Maria Martelo, Documenta)


Curiosidades sobre a autora:


Investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Organizou a antologia “Poemas com Cinema” em parceria com Joana Matos Frias e Luís Miguel Queirós.


Alguns livros de Rosa Maria Martelo:


Os PEN do ano III:"Salazar e o Poder - A Arte de Saber Durar" de Fernando Rosas (Prémio Ensaio)

Uma breve apresentação do livro:


“A repressão é a resposta para a minoria que não respeita os sinais, as regras explícitas ou implícitas, as rotinas do enquadramento, da submissão, da conformação à ordem estabelecida. Para a maioria que é levada a obedecer, basta que se saiba que a repressão existe e que actua sobre os infractores. No salazarismo, no franquismo estabilizado, no fascismo italiano, ou no nacionalsocialismo alemão antes da guerra, o controlo totalizante da sociedade, a acção dos aparelhos de inculcação e de enquadramento ideológico, se se quiser, a prevenção, foram mais decisivos do que a repressão propriamente dita na estabilização desses regimes.”
(excerto da introdução de “Salazar e o Poder - A Arte de Saber Durar” de Fernando Rosas, Tinta da China)


Curiosidades sobre o autor:


Foi preso duas vezes durante o Estado Novo, tendo sido submetido à tortura do sono. É um dos fundadores do Bloco de Esquerda, tendo sido deputado e candidato à Presidência da República.


Alguns livros de Fernando Rosas:


terça-feira, 5 de novembro de 2013

Os PEN do ano II: "A Terceira Miséria" de Hélia Correia (Prémio Poesia, também)


Um poema de “A Terceira Miséria”:


Poema 33
De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.
(poema de "A Terceira Miséria" de Hélia Correia, Relógio D'Água

Curiosidades sobre a autora:


Hélia Correia é uma repetente nos Prémios do PEN Clube Português, tendo recebido anteriormente o Prémio Narrativa por “Lilias Fraser”. A Grécia Clássica é um tema recorrente na sua escrita, sendo a única escritora a ter contos publicados nas duas edições da Granta Portugal.


Alguns livros de Hélia Correia:


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os PEN do ano I: "Cólofon" de Manuel de Freitas (Prémio Poesia)


Um poema de “Cólofon”:


Lawrence's, Quarto Tradição
Dormes, e eu não. O que tem sido
uma constante, inversamente recíproca,
dos dias e das noites que aceitámos partilhar.

Lá em baixo, a desoras, o rebanho
passa, faz-me ouvir os breves
badalos, entre folhagem seca.
De Lisboa só nos chegam notícias
fúnebres, dispensáveis. Caim deu boleia
a Abel, num automóvel de luxo.
E arrasta-se, entre putas e ladrões,
um tango triste que já não queremos dançar.

É apenas isso. Dorme. Talvez amanhã,
subitamente, o mundo nos pareça perdoável.
(poema de "Cólofon" de Manuel de Freitas, ed. Fahrenheit 451) 


Curiosidades sobre o autor:


Dirige a editora Averno, escreve críticas literárias para o Expresso e é um dos responsáveis pela revista “Telhados de Vidro”.

Alguns livros de Manuel de Freitas:

A Última Porta