quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Rentes de Carvalho com os portugueses

A Joana Ribeiro anda há 2 anos a falar-me de Rentes de Carvalho, não poupando elogios. E assim foi crescendo em mim uma vontade de o ler, vontade que no entanto ainda não se concretizou. Foi então que há cerca de duas semanas, a propósito do Grande Prémio da Crónica APE que Rentes de Carvalho recebeu por “Mazagran”, decidi ressuscitar um velho projecto: obrigar a Joana a escrever um post. Deixo-vos assim com o primeiro guest post do Sentido dos Livros, esperando que este seja o primeiro de muitos.


A primeira vez que ouvi falar de José Rentes de Carvalho foi há pouco mais de dois anos e logo aí, ignorando por completo o seu universo, fui apanhada de surpresa pela adjectivação forte com que o caracterizavam: "mestre".  De início ainda pensei ingenuamente tratar-se de um desses novos nomes da literatura contemporânea portuguesa sobre os quais se criam cultos, tal era o entusiasmo com que falavam da melhor descoberta dos últimos tempos.

Antes de mencionar as minhas duas experiências com a leitura de Rentes, gostava só de fazer este parêntesis sobre alguns motivos extra-literários que me levam a sentir especial carinho pela figura. Digamos que sou susceptível às circunstâncias pessoais de quem escreve as histórias que eu leio. Pois estamos perante um homem que já ultrapassou os oitenta anos, que distribuiu uma vida longa entre São Paulo, Rio de Janeiro, Nova Iorque, Paris e Amesterdão, que consta ter sido apresentado pela rainha Beatriz ao presidente Sampaio (que não sabia quem ele era?) e que ainda hoje viaja de carro entre Trás-os-Montes e a Holanda umas cinco vezes ao ano. Que continua a escrever e finalmente a ser publicado, com o reconhecimento devido, entre os portugueses – para quem sempre escreveu os seus livros, à excepção de “Com os Holandeses”.
                                                                                      
Comprei então na altura “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” e atirei-me a ele como em busca do Santo Graal. Confesso que inicialmente tive um desapontamento instantâneo, porque não tinha percebido que se tratava de um livro de contos e talvez ainda estivesse sob o 'mindset’ pedrosiano que reserva apenas e só ao romance a categoria de grande literatura. Talvez Rentes tenha sido o primeiro a ajudar a desfazer essa barreira. Mas não só: terá também sido com Rentes que comecei a redescobrir o prazer incomparável de ler prosa bem escrita na língua portuguesa. Admito que as histórias de “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” possam não apelar a toda gente. Reportam-se a maioria das vezes às décadas do pré-25 de Abril, relatos ficcionados sempre numa primeira pessoa que parece ir diferindo vagamente de uma história para outra (ou talvez não), cujas peripécias parecem confundir-se com as que o próprio Rentes terá vivido ou ouvido contar, num tom confessional e de grande transparência perante o leitor. Com uma linguagem muito próxima da oralidade que se revela fonte inesgotável sobre costumes, manhas, expressões, etiquetas. Poderia destacar vários contos, mas escolho para meu favorito um que faz essa síntese entre a mundividência do homem feito nas megalópoles e a simplicidade rústica das terras do norte de Portugal, dois pólos que perpassam todo o livro. Em “O Enterro de Meus Pais”, lemos sobre a longa e tortuosa viagem de um português, de Amesterdão até uma aldeia perdida nos confins transmontanos, para o funeral do pai. Será também, perante o fundo significado dos rituais de comunidade e luto, a constatação súbita de uma incapacidade a roçar o infantil e da «consciência da própria insignificância». Cito também com curiosidade a observação final de “O Incêndio de Lisboa”, em que o emigrante, sempre nostálgico da juventude vivida no Chiado, regressa a Lisboa de propósito para ver o que resta do incêndio nos armazéns e concluir que «os escombros parecem-me ainda mais terríveis e desesperados, ao mesmo tempo símbolo e sinal de mau agouro num país onde, mau grado a democracia recuperada, a vida da maioria continua a ser uma longa espera imponente e triste entre coisas que apodrecem e coisas que ardem».

Extremamente divertida foi a leitura de “Com os Holandeses”, que comprei pouco tempo depois de ter viajado por diversas cidades e vilas holandesas. Mesmo considerando as inevitáveis mudanças ocorridas desde a publicação original em 1971, reconheci com deleite os diversos choques e estranhezas que um meridional sofre às mãos de um povo fanático pela organização, a eficiência e o lucro, naturalmente sensaborão e avesso a espontaneidades - apesar de tudo ter para que a vida lhe corra doce, desprezador da culinária como algo mais do que a satisfação de uma necessidade, suspeitoso de tratos delicados e subtilezas (que pretende este?), e por aí fora. Sorri quando reconheci, entre outros, os «croquetes insípidos e os sacos de batatas fritas do automatik da esquina» com que os jovens que vão jantar fora se contentam. E o aparto total de afectos entre pais e filhos? Só me lembra a minha mãe quando diz, com o desconsolo de alma português, que na Inglaterra onde o meu irmão está emigrado, e que ela pouco ou nada conhece, eles não sentem a família como nós. Eis o retrato da típica mulher holandesa que alugou o quarto a Rentes de Carvalho e que anos mais tarde recordava tê-lo tratado como mãe:

«A Holanda nesse tempo só ia de férias para onde lhe garantissem as batatas cozidas e o estufado nacional, e os meus temperos e óleos agrediam o nariz da dona como murros. Vinha inspeccionar o azeite, o colorau, o alho, sem nela pegar examinava a folha de loureiro, tudo venenos voláteis que espalhados pela casa lhe punham a saúde em perigo. Abria as janelas e informava os vizinhos da minha culpa, porque também eles se doíam. Obrigou-me à promessa de não fazer fritos. Reduziu-me o fumar, porque o tabaco amarelece as paredes, os cortinados, levantando assim despesas de pintura e de lavagem. Pediu-me que não fizesse barulho no corredor, que não entrasse tarde, não lesse de noite, me levantasse cedo.»

“Com os Holandeses” e outros títulos de Rentes de Carvalho foram, ironicamente, grandes êxitos no país que o acolheu. Em Portugal só nos resta recorrer ao ditado: mais vale tarde do que nunca.

Por Joana Ribeiro


Livros de J. Rentes de Carvalho publicados pela Quetzal:


5 comentários:

  1. Mas quem é o idiota que apenas acha que romances são grande literatura? Quem é o idiota que nunca Jorge Luis Borges, Horacio Quiroga, Dino Buzzati, Rubem Fonseca, Miguel Torga, José Cardoso Pires?

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    1. Há pessoas Miguel. A Inês Pedrosa é uma delas, que quando a Alice Munro recebeu o Nobel disse que o conto era um género fácil e que os escritores a sério escrevem romances. Escusado será dizer que nem eu nem a Joana concordamos com isso, embora deva referir que os contos são um género de que se aprende a gostar.

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    2. Ah, essa; devia ter percebido do "pedrosiano;" tenho uma vaga memória de ter lido esse texto na altura e achado os argumentos débeis. Mas, bem, também compreendo que se chegue a essa conclusão lendo Alice Munro ;)

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    3. Vamos zangar-nos Miguel ;) Não sei o que leste da Munro, mas acho a tua opinião injusta. Mas enfim, eu também acho o Lobo Antunes fraquinho, cada um tem o direito a criticar o que quer.

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    4. Lobo Antunes, fraco? Mas as metáforas e símiles são extraordinárias; ele coloca vinte numa página quando o típico escritor só teria imaginação para duas. E a maneira como ele penetra no âmago dos personagens, manipula vários tempos ao mesmo tempo, muda de perspectivas abruptamente sem perder o controlo. Ele é um virtuoso.

      Só é pena não ser muito bom a contar histórias.

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