domingo, 28 de dezembro de 2014

Não voltarei a ler Lobo Antunes


Imaginem-se num país estranho. O chão parece todo coberto de mármore rosa, mas quando olham de perto percebem que são reles placas de vinil pintadas. E pensam “onde está o reino de mil maravilhas que me foi prometido?”. Rumam sem rumo, procurando algo que faça a viagem valer a pena. De repente dão por vós junto a uma escadaria enorme, íngreme, com minúsculos degraus. A sinalética indica que no topo da escadaria há um restaurante paradisíaco, digno de receber os deuses sedentos de ambrosia. A custo, decidem subir, e vão andando e andando, já vos dói os calcanhares, escorregam uma série de vezes, quase desistem a meio e, quando já as últimas forças vos abandonavam, chegam ao topo. E à vossa espera… a maior chafarica de sempre! Cadeiras velhas e desconfortáveis, baratas pelo chão, com sorte comem um prego de pão duro e carne cheia de nervo. Para mim ler Lobo Antunes foi isto.

Li o “Exortação aos Crocodilos” há 7 anos. Foi-me oferecido por uma grande amiga, a Sílvia, que coitada mais não fez do que satisfazer um desejo meu e é em nome dela que aceito que este livro permaneça sob o meu tecto. Para perceberem a dimensão da desgraça, ia eu na página 200 quando me apercebi que as narradoras do livro eram 4 mulheres e não apenas 3 e segui em frente, como se nada fosse, nem sequer ponderando voltar ao início. O estilo de escrita, muito baseado em vozes que se emaranhavam, em constantes movimentos de aproximação e afastamento, até me pareceu interessante, mas noutro contexto. Não ali. Tudo era tão estéril, tão masturbatório… Mas mantive-me fiel ao meu princípio de dar uma segunda hipótese a escritores e predispus-me a voltar a Lobo Antunes no futuro. Com esse objectivo em mente, há dois anos comprei na Feira do Livro o “O Manual dos Inquisidores” e coloquei-o em lista de espera, sem pressa.

Cruzei-me pouco com Lobo Antunes nestes anos. Fui ouvindo algumas declarações dele, polémicas por norma, mas já conhecia a sua fama de quando passei pelo Cenjor e uma entrevista que lhe foi feita pela Isabel Stilwell, penso eu que para o Diário de Notícias, era apresentada como exemplo do que não fazer. Mas foi no início deste ano, também por causa da Sílvia, que me ofereceu o “Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer”, que voltei a contactar com Lobo Antunes mais de perto. A entrevista dele ao Carlos Vaz Marques incomodou-me, mas segui em frente, e até já estava convencido a ler o “Explicação aos Pássaros” quando li há poucas semanas outra entrevista de sua excelência no Diário de Notícias, que eu qualificaria como uma das coisas mais lamentáveis de sempre. Não por culpa do jornalista, coitado, que depois deve ter sido colocado a soro para limpar o organismo (um banho de salva, também não era mal pensado). Tanto disparate, tanta arrogância, tanta maldade proferida por alguém que diz considerar a bondade aquilo que mais admira nas pessoas. E assim fui empurrado para uma resolução: expurgar Lobo Antunes da minha vida. Não, não voltarei a ler Lobo Antunes. Já doei o “O Manual dos Inquisidores” a uma amiga. E passei estas semanas a recolher pérolas desta pessoa adorável para fundamentar a minha decisão.

Atenção: isto não quer dizer que eu considere que temos de gostar do escritor para gostar da obra, por norma a figura do escritor é-me indiferente, mas o Lobo Antunes esgotou a minha paciência e não quero perder mais tempo com ele. Prossigam neste texto por vossa conta e risco. Se são sensíveis a incoerências, ao chico-espertismo e carícias ao próprio ego fujam já, que o que se segue não é bonito.


A genialidade humilde do melhor de sempre


Lobo Antunes acha-se uma pessoa desinteressante. Ele não importa nada, o que importa são os livros. Mas os livros, é impossível falar deles. Ora, o que fazer então quando o autor não interessa e não se pode falar dos livros? Alguns de vocês, maldosamente, pensarão em “estar calado”, mas há que desafiar essas imagens feitas e falar desalmadamente, ter quase um guião montado que se repete de entrevista em entrevista. Dizer que se detesta entrevistas em entrevistas dadas no espaço entre entrevistas. Falar, falar, falar.

E porque os livros valem por si, e não precisam de mais nada, façam-se vídeos promocionais. Em que o autor se senta naturalmente junto a um piano, um candeeiro e um poster, que por acaso ali se encontram, e fala acompanhado por uma toada melancólica, risos em câmara lenta, citações e palavras que surgem para logo se desvanecerem. E viva a literatura pura!



Numa entrevista publicada na Única em 2010, Lobo Antunes falava do início da sua vida como escritor. “Ao contrário da minha família, que pensava que eu ia acabar na miséria, a vender pensos rápidos, eu tinha a certeza que não. Estava seguro do meu génio. Era uma coisa que não oferecia qualquer discussão.” Confiante o jovem Antunes, que há umas semanas afirmava no Público que “todo o escritor se acha o melhor senão não vale a pena escrever. Para não ser o melhor não vale a pena”, questão que felizmente para ele não é um problema, que sem pejo nenhum disse, numa entrevista à Fátima Campos Ferreira emitida pela RTP, “eu acho que sou o melhor”.

Mas se pensam que esta atitude revela falta de modéstia estão completamente enganados. Vejam bem, também na entrevista da Única, Lobo Antunes dizia: “Vou ficar. Estive a ler o texto de um crítico do "El País" que diz que daqui a cinco mil anos vou ser lido com paixão. Acho que ele tem razão.” No fundo é apenas uma vontade muito grande de não contrariar um crítico do El País, é um gesto de generosidade. Mas espera lá… o Lobo Antunes de 2014, no Diário de Notícias, quando confrontado com a excelente recepção que tem por parte da crítica portuguesa, e não apenas da internacional, não disse “não estou a falar em crítica de jornal, impressionista, mas da séria”? Estou algo confuso! Então a crítica em jornais é má, mas se for no El País a louvar o escritor já é boa? Mas se for em Portugal, com o mesmo louvor, já é má? E se não for a louvar, no estrangeiro? Muitas questões, cujas respostas estarão certamente nas múltiplas vozes que ecoam na cabeça de Lobo Antunes.

Se há coisa que Lobo Antunes faz questão de dizer é que tem muito orgulho de ser português. E do que é que ele não tem orgulho? Da literatura  portuguesa. “Porque é que a literatura portuguesa é tão má?”, dizia este grande nacionalista na entrevista ao Público. E na entrevista ao Diário de Notícias que motivou este meu artigo há a menção a Eça e Camilo como “pigmeus”, isso mesmo, autores sem capacidade de competir com os seus contemporâneos estrangeiros. Eu acho que o Lobo Antunes devia tomar um banho de álcool e fazer um jejum mínimo de uma semana antes de sequer mencionar os nomes de Eça e Camilo, mas quem sou eu!

Mas há algo que o Lobo Antunes gosta mais de fazer do que criticar os outros. Diz-se que a vida é feita de equilíbrio, e de facto uma pessoa tão rigorosa e exigente com os outros terá depois dificuldades em aplicar os mesmos padrões a si próprio (vá, vamos fingir que acreditamos nisto). O auto-elogio é uma das artes Lobo Antonianas, geralmente atribuído a outra pessoa e proferido com aquele ar de enfado que é um dos charmes de tão prestigiada figura. “O Christian Bourgois editor francês da obra de Lobo Antunes, com quem não falava de livros, escreveu-me uma carta, antes de morrer, em que diz: "Tu és meu irmão e não há escritor no mundo que admire tanto." Nunca me tinha dito isto. Era um homem que parecia seco, mas por baixo dessa frieza aparente havia um calor humano extraordinário”, revelava humildemente à Única, com o bónus da falar de si na 3ª pessoa, o que se compreende perfeitamente porque o homem é uma instituição. Em várias entrevistas esse mesmo tipo de admiração é atribuída a Cardoso Pires, Eugénio de Andrade e Jorge Amado. Curiosamente são sempre pessoas que morreram… Minto, o Steiner também está neste grupo que, segundo o modesto escritor confessou ruborizado à Estante, “disse numa entrevista que tinha vergonha de me conhecer porque era pequeno de mais ao pé de mim.“ O Steiner é uma pessoa de uma enorme elegância e é possível que tinha dito tal coisa, movido sobretudo pela educação. O que não é nada elegante é o destinatário de tais comentários fazer deles gáudio em entrevistas. Mas como vamos ver a elegância não é um dos fortes de Lobo Antunes.


Não te perguntes o que podes fazer pela tua editora, critica-a em público


Ai o grupo Leya… Coitados. Não deve ser pêra doce ter de gerir alguém como o Lobo Antunes. O mais espantoso nesta frustrante história é que já em 2008, na entrevista ao Carlos Vaz Marques, Lobo Antunes se queixava que não estava contente com a editora, dizendo que “não havia, não se sentia, não se via uma linha orientadora, um projecto editorial coerente”. Mas, quando a Dom Quixote foi integrada na Leya prometeram-lhe que seria uma editora de literatura sem concessões (introduzir riso). Pois bem, passados 6 anos e livros da Ana Zanatti e da Rita Ferro, livros infantis da Madonna e um sortido de policiais de ar duvidoso, terá a Dom Quixote conseguido esconder as suas opções de Lobo Antunes?

Na famigerada entrevista ao Diário de Notícia diz-se em alto e bom som: “o Grupo Leya tem muitas deficiências e não tem editores no sentido em que eu o entendo. São pessoas que publicam livros.” Isto depois de desacreditar o Prémio Leya, dizendo que os livros que ganharam não têm grande qualidade. Quantos terá ele lido? Ah, e diz também que o prémio tem muito dinheiro. Esses escritores pá, uns lambões a abotoarem-se com aquela dinheirama. Pouca vergonha! E as editoras a darem dinheiro a escritores?! Este mundo está perdido. Se ao menos eles fossem como o Lobo Antunes que diz que os prémios lhe dão jeito, sobretudo quando vêm com dinheiro… O quê?! Ai, querem ver que há aqui outra incoerência!

Não digo que algumas das crítica do Lobo Antunes à Leya e à Dom Quixote não sejam merecidas. Mas a relação autor/editora deve ser de confiança e de interajuda, caso contrário, de que vale todo o trabalho? O autor tem todo o direito a fazer críticas, mas à porta fechada. Mais uma vez, uma questão de elegância. Em última análise, se não é ouvido, tem bom remédio: mudar de editora! O que nos leva à pergunta que não quer calar: o que prende Lobo Antunes à Dom Quixote? Falta de opção não será. Ele dizia ao Carlos Vaz Marques que não era questão de dinheiro, que ele se borrifava para isso. Então, porque não tornar-se um eremita literário numa pequena editora? É curioso que os autores que clamam independência e criticam a lógica comercial acabem sempre em grandes grupos, uns a fazerem vídeos, outros a gravarem cds… A superioridade moral é de facto algo fácil quando se limita à verborreia. Há uma expressão americana que encaixa aqui que nem uma luva: put your money where your mouth is!


Lobo Antunes versus Saramago: nem a morte os separa


A rivalidade entre os dois escritores é famosa, ou melhor, de Lobo Antunes com Saramago, porque para ser sincero nas vezes que vi Saramago a falar de Lobo Antunes foi para relativizar ou defender-se. Aliás, ler a entrevista a Saramago seguida à de Lobo Antunes em “Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer”, de Carlos Vaz Marques, permite identificar facilmente diferenças de atitude. Podia ter feito desta rivalidade o centro do meu artigo, mas as duas referências que encontrei a Saramago em entrevistas do Lobo Antunes são suficientemente elucidativas e sinceramente, sendo eu um fã confesso de Saramago, quis poupar-me a mais irritações. Vou por isso ser sintético e directo, sem adjectivar muito o que foi dito, porque não há necessidade de fazê-lo.

Na entrevista já aqui mencionada a Carlos Vaz Marques, em 2008, a respeito da inclusão da Dom Quixote no grupo Leya, o entrevistador provocou-o referindo que assim Lobo Antunes e Saramago estão no mesmo grupo. A irritação é logo evidente e, entre afirmações de que nunca leu nada de Saramago (ler um pouquinho dos “Cadernos de Lanzarote” e folheou um ou outro romance – daqui a minha saudação às pessoas que formam opiniões sobre um livro folheando-o), saiu-lhe a seguinte frase: “Ó Carlos, se me quiser arranjar competições arranje-me pessoas do meu tamanho.” (Vamos fazer um pequeno intervalo para recuperar a calma. Acho que todos precisamos… É nestes momentos que uma pessoa gostaria de fumar.)

E perguntam vocês: o que é que pode ser pior do que autonomear-se melhor do que um escritor que venceu o Nobel? Fazer pouco desse autor depois de ele ter morrido. Lembram-se da história da elegância de que falava no início, acho que se havia um resquício dessa palavra que pudesse ser associado a Lobo Antunes, na próxima passagem tudo terminará. O ponto alto da entrevista publicada em Novembro no Diário de Notícia, a respeito do Nobel:

Lobo Antunes: (…) Se um português ganhasse aquele prémio, como é tão importante seria uma alegria para as pessoas da nossa terra.

Entrevistador: Isso foi o que disse José Saramago!

Lobo Antunes: Ele disse isso? Então em alguma coisa acertou. Ele disse que era uma alegria para os portugueses?

Entrevistador: Sim, que cresceram 3 centímetros.

Lobo Antunes: Ele disse isso… Então quantos metros não cresceu ele na própria cabeça. É um homem especial e tem de ser visto da maneira como ele era, mesmo que agora tudo se vá desvanecendo devagarinho.

Quem cresceu uns metros na sua própria cabeça foi certamente Lobo Antunes quando recebeu o Prémio Jerusalém. “O Prémio quê?!”, perguntam vocês. “O Prémio Jerusalém!”, respondo eu com um ar ainda mais incrédulo. Como é que é possível que não conheçam o Prémio Jerusalém, que é o mais prestigiante do mundo literário segundo… Lobo Antunes, o único português que o recebeu, em entrevista à Fátima Campos Ferreira. Diz a sabedoria popular que uma mentira mil vezes repetida se transforma em verdade. Vamos tentar. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. (estão a sentir alguma coisa?) O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. (do meu lado nada!) O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. O Prémio Jerusalém é o prémio literário mais prestigiante do mundo. (acho que isto não vai resultar…)


Em jeito de conclusão


De quem é a culpa disto tudo? Das pessoas. Porque são elas que legitimam este actos ao acharem que alguém genial pode ser arrogante e dizer o que lhe vêm à cabeça e que nós, pobres mortais, nos devemos prostrar e sentir-nos abençoados por podermos assistir. Para mim com um grande talento, vem uma grande responsabilidade, o que ainda torna menos desculpáveis actos pouco dignos.

Não ponho em causa o valor literário da obra de Lobo Antunes. Não gostei do que li, mas acredito que haja outros livros bons. Mas também acredito que não se encaixam naquilo que é para mim um livro bom, porque os malabarismos literários, quando não são bem sustentados em boas histórias, não fazem muito o meu género. E fazendo uma análise custo benefício, acho sensato que o meu caminho e o de Lobo Antunes não se voltem a cruzar. De qualquer forma, ele próprio dizia que ninguém escreve bons livros depois dos 70 e tal anos…

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Em estado crítico: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” de José Saramago


“Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és os meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.”


Da cera das velas ardidas a Igreja foi criando as suas grandes figuras, que como ídolos de barro presidem à História, destituídas do direito mais fundamental que cada um possui: o de ser humano e poder escolher. Maria e Jesus viram a sua humanidade ser-lhes recusada. Maria foi até expurgada da sua sexualidade, trocando a natural fecundação pela imaculada concepção. Nem o direito de gerar um filho como as outras mulheres Maria teve, tal como Jesus, o filho de um acto ascético, viu ser-lhe negada a possibilidade de falhar, sentir e optar. Saramago restituiu a Maria e a Jesus a sua dignidade enquanto seres humanos e apresenta-nos um Evangelho escrito pela perspectiva de Jesus, não porque ele o narre, mas porque são os seus interesses que estão no centro da história e não a caprichosa vontade divina.

Saramago realiza na escrita deste livro um acto de enorme coragem, não só pelo quão herético é tudo o de nos apresenta (segundo as crenças da Igreja), mas por agarrar na mais conhecida história do mundo cristão e ousar recriá-la como se usasse as mesmas notas, mas produzisse uma música diferente, com laivos enevoados da original.

Maria tem vários filhos, todos fruto de actos carnais, sendo Jesus o mais velho de todos. Todas as figuras têm virtudes, mas têm também as suas falhas. Jesus é pouco mais do que um adolescente tradicional quando se rebela contra os seus pais, afastando-nos da mente a figura piedosa idealizada, incapaz de perdoar ao pai morto uma falha e acusando a mãe de conivência, deixando-a à sua sorte com vários filhos para criar. Mas também Maria errará quando Jesus voltar para lhe revelar a sua ligação com Deus, não acreditando nele, que contará com maior apoio de estranhos do que da sua própria família,

Jesus é a cada pulsar um homem, não uma figura seráfica, capaz por vezes de grandes actos, como a recusa em sacrificar o cordeiro, mas que não renega os seus impulsos, mesmo os carnais. A relação entre Jesus e Maria de Magdala é um amor plenamente vivido e celebrado fisicamente e é a relação de maior transcendência e pureza do livro, havendo uma ligação espiritual entre os dois que faz com que Jesus esteja disposto a tudo enfrentar por ela, e ela a tudo abandonar por ele. É o Jesus compreensivo e que ama o próximo que não condena Maria da Magdala pelo seu passado e que a trata com um respeito proporcional à devoção que ela lhe vota.

Mas de nada serve a Jesus ter vontade porque no fim não terá como escapar aos ambiciosos planos de Deus, disposto a tudo para alargar a sua influência. Para Deus tudo não passa de um jogo de xadrez e Jesus é uma peça que ilusoriamente pensa poder escusar-se a fazer parte do jogo. Num acto de desespero, tentando corrigir o que se adivinha inadiável, Jesus acredita que se puder morrer como aspirante a Rei dos Judeus e não como filho de Deus a sua morte não servirá os planos divinos. Mas não  tardará muito a perceber que tudo o que fizesse o levaria àquela cruz, cruelmente privado por Deus da sua vontade, como nos séculos vindouros o será por multidões fanáticas que cumprirão as imagens que lhe foram reveladas quando foi convidado a juntar-se a esta empresa pela glória terrestre.

“O Evangelho Segundo Jesus Cristo” é um acontecimento literário por direito próprio, um livro que será lido por anos e anos, sem perder a sua pertinência. A voz de Saramago eleva-se e adquire proporções mitológicas, como se um eco profético se apoderasse do leitor. Saramago reconta-nos uma história, mas acima de tudo dá-nos uma lição e pobres daqueles que não a conseguirem perceber. Um livro acima do céu e da terra.


Classificação: 20/20

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

A dependência dos livros - edição Dezembro de 2014


Como sabem sou um fervoroso adepto de cair reiteradamente em tentações literárias e o Natal é a altura do ano indicada para uns pecados mais substanciais. O meu lema é comprar muito por pouco, mas abro aqui a minha excepção para comprar livros cujo preço normalmente me faria seguir em frente.

A The Folio Society é paragem obrigatória quando se fala de livros que são um verdadeiro investimento. Sim, os livros são caros. É verdade, mas valem cada libra gasta! E este ano andava já há vários meses a cortejar o “The Wonderful Wizard of Oz” de L. Frank Baum, que cumpria todos os requisitos para ser uma fascinante leitura natalícia, e não havia como impedi-lo de ir parar à minha meia. E já que precisava de comprar outro livro para continuar a ser membro da Folio, aproveitei para encomendar também o “Under Milk Wood” do Dylan Thomas, poeta que me tem despertado ultimamente a curiosidade.

Mas nem só de livros da The Folio Society se fez o meu Natal e, na categoria “prendas para mim próprio” lugar também para o “Toda a Mafalda”, reeditado recentemente pela Verbo, de que já vos falei anteriormente. E não podia estar mais contente!


As compras de Dezembro ficaram completas com mais uma estonteante visita ao Sr Teste, que me conseguiu dois livros raros de Nelly Sachs e Bjoernstjerne Bjoernson, Prémios Nobel dos quais já não se encontra nada nas livrarias. Consegui finalmente deitar a mão a um exemplar de “A Ceia dos Cardeais” de Júlio Dantas que, após uma breve leitura, já deixou transparecer o porquê das duras críticas de Almada Negreiros. E só para tornar tudo ainda mais perfeito, trouxe comigo mais um livro da Marguerite Duras, “Emily L.”, ficando mais próximo do meu objectivo de ter todos os seus livros publicados em Portugal, e também “A Dama de Branco e Outros Contos” de Nathaniel Hawthorne, autor que me deixou bastante bem impressionado no início do ano com o famoso “A Letra Encarnada”.


E para já é tudo. Nas próximas semanas voltaremos à temática das prendas, mas desta feita dadas por terceiros.

sábado, 29 de novembro de 2014

A dependência dos livros - edição Novembro de 2014


Ecléctico. Assim descreveria o mês que está prestes a terminar. Do prestigiado dramaturgo português Bernardo Santareno, a Frederico Pedreira, um novo nome que tem dado que falar, passando pelo Prémio Nobel William Faulkner, pelo autor clássico Joseph Conrad e por Siegfried Lenz, um dos grandes nomes da literatura alemã, sem esquecer o grande autor brasileiro João Cabral de Melo Neto e o clássico dos clássicos Edgar Allan Poe, a minha biblioteca recebeu autores para todos os gostos.

Também as proveniências foram diversas: “Todos os Contos” de Edgar Allan Poe e “Poesia Completa” de João Cabral de Melo Neto foram ganhos em passatempos; “Nostromo” de Joseph Conrad foi comprado numa promoção da FNAC; “O Som e a Fúria” de Faulkner era uma compra potencial há já algum tempo que foi finalmente concretizada na Almedina; o 2º volume das “Obras Completas” do Bernardo Santareno foi-me encontrado pela Pó dos Livros; e o Sr Teste voltou a fazer das suas ao conseguir-me o “Dora Bruder” do Modiano e, quando o fui buscar, não resisti a “Um Bárbaro em Casa” do Frederico Pedreira e a “A Lição de Alemão” de Siegfried Lenz. Ufa, será que a minha estante aguenta?

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Ponto de Fuga: uma nova editora com um pé no passado



É com uma nota de melancolia, mas com promessas de diversão à mistura, que a Ponto de Fuga se apresenta ao mercado editorial português. A nova editora, que se posiciona como generalista (a ficção, a não ficção, a poesia e o infantojuvenil estão na sua mira), assume como uma das suas missões recuperar obras que desapareceram das livrarias, num claro esforço de preservação da memória.

Vladimiro Nunes, ex-jornalista do Sol e fundador da Ponto de Fuga, juntamente com a sua mulher Fátima Fonseca, referiu à Lusa que "as grandes editoras andam distraídas e parece-nos que há boas coisas que ainda podem ser feitas e editadas", razão pela qual, apesar do contexto de crise, consideraram viável este projecto. E em bom momento o fazem, porque também me parece que há uma área editorial por explorar: temos editoras focadas nas novidades, editoras focadas nos grandes clássicos, mas ninguém está muito atento às obras que desapareceram das livrarias portuguesas ou que nem sequer lá chegaram a entrar. Só esta declaração de intenções inicial já merece sonoras e calorosas boas-vindas à Ponto de Fuga!

Mas a ambição não fica por aqui e a Ponto de Fuga pretende ser mais do que uma editora. A ideia é criar na sua sede em Lisboa, na Rua de Ponta Delgada, uma pequena “mercearia cultural” em que, para além dos livros da própria editora, estarão também disponíveis outras obras escolhidas a dedo pelos editores e uma selecção de discos em vinil. Mas calma, que ainda não perderam nada, porque a loja será hoje aberta ao público, assinalando o 63º aniversário da publicação na Dinamarca da primeira tira do Petzi, a primeira aposta da Ponto de Fuga.


Viagens ao passado com Petzi e Natália Correia



O clássico da BD que marcou os anos 80 em Portugal, na altura editado pela Verbo, e que mereceu uma referência de Nuno Markl na sua “Caderneta de Cromos”, marca a estreia da Ponto de Fuga, que reeditará os 3 primeiros livros da colecção: “Petzi Constrói um Barco”, “Petzi e a Baleia” e “Petzi e a Mãe Peixe”. Criado pelo casal Vilhelm e Carla Hansen, ele responsável pelas ilustrações, ela pelos textos, Petzi surgiu em 1951 na Dinamarca, ficando a cargo de Susana Janic a tradução directamente do original.

A Ponto de Fuga continuará sob o signo pelo passado no início de 2015, altura para que está programada a reedição de “Não Percas a Rosa” de Natália Correia, o diário escrito pela autora entre Abril de 1974 e Dezembro de 1975 e que nos revela um olhar em primeira mão sobre a Revolução do Cravos.

E depois? Depois tudo está ainda no segredo dos deuses. Resta-nos esperar por mais novidades e desejar à Ponto de Fuga muitos sucessos.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Mafalda, há 50 anos a contestar

© Joaquín S. Lavado (Quino)/Caminito S.a.s. - Literary Agency
Tira gentilmente cedida pela Editorial Verbo.

Uma mulher de 50 anos deve ser madura e ponderada, saber distinguir o essencial do acessório e guiar-se por uma visão de longo prazo. Mafalda não precisou de tantos anos para ser tudo isso, para se afirmar como a mais sábia e racional das personagens do universo criado por Quino e do qual faziam também parte os seus pais e depois, surgindo sucessivamente, Filipe, Manelito, Susanita, o irmão mais novo de Mafalda e Liberdade (ironicamente a mais pequena do grupo de amigos e a mais contestatária).

Mafalda nasceu, curiosamente, graças a uma agência de publicidade, que teve a ideia de criar uma BD sobre uma família, em que pudesse fazer product placement da marca de electrodomésticos Mansfield. Quino apresentou a sua proposta, devendo Mafalda o seu nome à semelhança em termos de letras com a marca, mas a agência decidiu seguir por outra via, e Mafalda só chegaria ao grande público a 29 de Setembro de 1964, no semanário Primera Plana, já sem nenhuma ligação ao mundo da publicidade. Até Junho de 1973, data em que Quino publicou a última tira da personagem, Mafalda passaria pelo El Mundo de Buenos Aires e, finalmente, pelo Siete Días Illustrados.




Uma visão pessoal sobre Mafalda


Como Mafalda também eu era uma criança de mente velha, que não resistia a nas férias vasculhar a biblioteca municipal em busca de livros por ler, tarefa que com o tempo se tornou cada vez mais árdua. Foi numa dessas visitas que me deparei com uma edição de "Toda a Mafalda". Nunca fui um grande fã de BD, tinha lido alguma coisa do Garfield, alguma coisa dos Smurfs, mas não era por definição o género que mais me agradava. Mas Mafalda depressa revelou a sua capacidade de fascinar e de surpreender, que resulta da união de uma visão peculiarmente prática do mundo com um irracional ódio por sopa.

Na altura, enquanto criança, Mafalda e Liberdade pareciam-me duas personagens divertidas, nas quais me revia, mas sem perceber a profundidade do trabalho de Quino. A grandeza de Mafalda, a inteligência e a sofisticação daquelas breves tiras apenas se revela na sua plenitude aos olhos de um adulto, tornando evidente a dimensão social e cultural desta obra e o quão astutamente crítica Mafalda é face aos vícios da sociedade.

O mundo em que Mafalda surgiu pode já não existir e as preocupações que assolam o nosso quotidiano podem ser muito distintas, mas há princípios basilares que são imutáveis (a inteligência de questionar, de não agir sem perceber o porquê, por exemplo) e que em parte explicam a longevidade das histórias criadas por Quino que, pelo impacto de Mafalda, foi agraciado este ano, em que se assinalam os 50 anos do aparecimento desta personagem, com o Prémio Príncipe das Astúrias.



Verbo reedita “Toda a Mafalda”


A comemorar os 50 anos de uma das BD mais populares de sempre a Verbo, chancela do grupo Babel, publicou recentemente uma edição comemorativa que reúne todas as tiras criadas por Quino, complementadas por artigos de opinião e informações que elucidam o leitor sobre os factos históricos por detrás de alguns gags. Procurem esta edição nas livrarias e não prescindam da oportunidade de comprar um tesouro que passará de geração em geração. Com direito a entrada directa para a minha lista de pedidos ao Pai Natal.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A dependência dos livros - edição Outubro de 2014


Outubro foi um mês de compras muito interessantes e, para variar, de grandes pechinchas. Houve a promoção da Wook, um leve 3 pague 2, em que comprei “Deserto” do Le Clézio e 2 livros que estavam há muito tempo na minha lista: “Contos do Gin-Tonic” do Mário-Henrique Leiria e “Sempre Vivemos no Castelo” de Shirley Jackson.

Comecei a reunir a trilogia do Cairo do Naguib Mahfouz no Natal passado, numa promoção da FNAC, na qual não estava incluído o volume do meio, o “O Palácio do Desejo”. Pois bem, deixei-me ficar calmo, pensando que não faltariam oportunidades no futuro para comprá-lo. Até ao dia em que me apercebi que o livro estava esgotado em quase todo o lado (incluindo na editora!) e entrei em pânico. Felizmente havia uma cópia à minha espera na Bulhosa, de onde veio também “O que a Noite Aprendeu do Gato” do Luís Miguel Rosa, um recém-conhecido da blogosfera.

Da promoção da FNAC com livros da Assírio & Alvim a metade do preço veio um namoro antigo, “São Paulo” de Teixeira de Pascoaes, e um livro de um autor por descobrir: “O Coronel Chabert” de Balzac.

Para completar este grupo, já de si ilustre, foi-me oferecido o “Dialética da Colonização” de Alfredo Bosi, um dos volumes da colecção “Biblioteca da Academia” da Glaciar, de que vos falei recentemente. E, para finalizar, e porque todo o bolo precisa de uma cereja que o transporte para outra dimensão, encontrei por acaso o “À Espera dos Bárbaros” do Coetzee na Fyodor Books, quando já tinha perdido a esperança de o conseguir comprar. Um final feliz, portanto.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Pen Clube Português e Associação Portuguesa de Escritores premeiam 8 escritores portugueses no mesmo dia

Ontem foi um dia algo insólito. Primeiro são anunciados os prémios do Pen Clube Português e deparamo-nos com o feito de os jurados não terem conseguido tomar decisões e concederem prémios ex-aequo em 3 das 4 categorias. Pergunto eu: isto faz algum sentido? Sim, em algumas situações podemos aceitar que haja obras de qualidade equivalente e que os jurados não consigam decidir, mas que isso aconteça em 3 categorias?! Parece-me só falta de critério.

E depois da torrente de vencedores dos Prémios do Pen Clube Português eis que a Associação Portuguesa de Escritores (APE) decide, no mesmo dia, anunciar o Grande Prémio do Romance e Novela. Mas que sentido faz anunciar os vencedores de 2 prémios literários de prestígio no mesmo dia? É uma questão de competição? Ou é um simples desconhecimento dos princípios básicos de marketing e comunicação? Quem fica prejudicado no meio disto tudo são os escritores que ficam algures perdidos numa lista e enorme de vencedores e têm menos projecção mediática. É caso para dizer que difícil ontem foi ser escritor em Portugal e não receber um prémio!

Vamos então conhecer as obras que para o Pen Clube Português e a APE representam o melhor da literatura produzida em Portugal em 2013:


“Que Importa a Fúria do Mar” de Ana Margarida de Carvalho, Teorema (Grande Prémio de Romance e Novela APE-DGLAB 2013)


Sinopse
Frente a frente, duas gerações de um Portugal onde, às vezes, parece que pouco mudou…
Numa madrugada de 1934, um maço de cartas é lançado de um comboio em andamento por um homem que deixou uma história de amor interrompida e leva uma estilha cravada no coração. Na carruagem, além de Joaquim, viajam os revoltosos do golpe da Marinha Grande, feitos prisioneiros pela Polícia de Salazar, que cumprem a primeira etapa de uma viagem com destino a Cabo Verde, onde inaugurarão o campo de concentração do Tarrafal.

Dessas cartas e da mulher a quem se dirigiam ouvirá falar muitos anos mais tarde Eugénia, a jornalista encarregada de entrevistar um dos últimos sobreviventes desse inferno africano e cuja vida, depois do primeiro encontro com Joaquim, nunca mais será a mesma.

Separados pelo tempo, pelo espaço, pelos continentes, pela malária e pelo arame farpado, os destinos de Joaquim e Eugénia tocar-se-ão, apesar de tudo, no pêlo de um gato sem nome que ambos afagam e na estranha cumplicidade com que partilham memórias insólitas, infâncias sombrias e amores decididamente impossíveis.

"Que Importa a Fúria do Mar" é um romance de estreia com uma maturidade literária invulgar que coloca, frente a frente, duas gerações de um Portugal onde, às vezes, parece que pouco mudou.



“Como Uma Flor de Plástico na Montra de um Talho” de Golgona Anghel, Assírio & Alvim (Prémio Pen Poesia 2013)


Excerto
"Subiu dez andares para assim nos poder olhar de frente. Não lhe interessa o que dizem os dissidentes da ditadura. Mas confessa que gostava dos chocolates Toblerone que a sua tia lhe trazia no Natal. Colecciona cabelos nas folhas de um herbário sentimental. Escreve a palavra vazio depois da palavra espera. É como a Salomé — dizem — pede cabeças mas só lhe entregam pizzas. Perdeu a fé num ataque de riso. Exige agora silêncio e um copo de tinto, enquanto apresenta em directo a autópsia da sua glória."



“Fogo” de Gastão Cruz, Assírio & Alvim (Prémio Pen Poesia 2013)


Excerto
TW, Dragon Country

Acreditávamos no tempo quando
o país do dragão era um espectáculo
de fronteira inviolável, e a angústia
não saía de dentro do cenário, e a
emoção era um lugar fictício:
acreditar no
tempo o erro mais terrível



“Para Que Serve a História?” de Diogo Ramada Curto, Tinta-da-China (Prémio Pen Ensaio 2013)


Sinopse
«Papá, para que serve a história?» — com esta simples pergunta, Bloch abria um dos mais belos livros de história de todos os tempos, «Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien». Colocada com a ingenuidade dramática de uma criança, a questão merece uma série de respostas subtis, que também Diogo Ramada Curto procura fornecer: a curiosidade por todo o tipo de actividades humanas; a vontade de conhecer a sociedade no seu todo e nos seus tempos múltiplos; sobretudo, o desejo de compreender a vida real, no seu quotidiano e nas suas práticas mais repetitivas, por oposição a uma concepção morta do passado, enterrado em museus, monumentos e manuais.

Mais importante ainda, o estudo da história faz parte das necessidades de formação de cidadãos politicamente conscientes, capazes de se baterem pelos seus ideais democráticos. Afinal de contas, como salientava Bloch, o regime nazi pôs a descoberto a irresponsabilidade de muitos intelectuais. A sua passividade e até o seu colaboracionismo frente a um regime feroz — fundado em interpretações históricas míticas ou totalmente falaciosas — traduziram-se numa incapacidade gritante para se dedicarem ao estudo da história e para se libertarem do peso do passado.

«Para Que Serve a História?» relança este debate cívico e intelectual e ao mesmo tempo questiona os vícios e a pobreza que, segundo o autor, imperam hoje nas universidades portuguesas.



“Ara” de Ana Luísa Amaral, Sextante (Prémio Pen Narrativa 2013)

 
Sinopse
"Primeiro: a prosternação diante do altar. A hesitação diante da proliferação dos ritos: sacrifício, louvor, cântico, narrativa. Figuras e vozes, acólitos. Insurgências. Japoneiras e túneis do sentido. Discrepância a todas as vozes acumulando num sentido. Não único, mas unívoco. Desde a infância.

Segundo (como se diz de um andamento ou de um painel): o tríptico dentro do tríptico das DUAS IRMÃS: a narrativa oblatória e clara da paixão sáfica. Ardente e casta. Sem falso pudor. Vergonha é não te amar. A oferenda lírica.

Terceiro: não é coisa de rasgar como romance este romance. Assente na pedra do lar um prisma multifacetado e translúcido: o amor único, a palavra. A brisa do arado sobre a ara." 
Por Maria Velho da Costa



“As Primeira Coisas” de Bruno Vieira Amaral, Quetzal (Prémio Pen Narrativa 2013) 



Sinopse
Quem matou Joãozinho Treme-Treme no terreno perto do depósito da água? O que aconteceu à virginal Vera, desaparecida de casa dos pais a dois meses de completar os dezasseis anos? Quem foi o homem que, a exemplo do velho Abel, encontrou a paz sob o céu pacífico de Port of Spain? Porque é que os habitantes do Bairro Amélia nunca esquecerão o Carnaval de 1989? Quem é que poderá saber o nome das três crianças mortas por asfixia no interior de uma arca? Onde teria chegado Beto com o seu maravilhoso pé esquerdo se não fosse aquela noite aziaga de setembro? Quantos anos irá durar o enguiço de Laura? De que mundo vêm as sombras de Ernesto, fabuloso empregado de mesa, Fernando T., assassinado a 26 de dezembro de 1999, Jaime Lopes, fumador de SG Ventil, Hortênsia, que viveu e morreu com medo de tudo? Quando é que Roberto, anjo exterminador, chegará ao bairro para consumar a sua vingança?

Memórias, embustes, traições, homicídios, sermões de pastores evangélicos, crónicas de futebol, gastronomia, um inventário de sons, uma viagem de autocarro, as manhãs de Domingo, meteorologia, o Apocalipse, a Grande Pintura de 1990, o inferno, os pretos, os ciganos, os brancos das barracas, os retornados: a Humanidade inteira arde no Bairro Amélia.



“Verdade e Enigma: Ensaio Sobre o Pensamento Estético de Adorno” de João Pedro Cachopo, Vendaval (Prémio Pen Primeira Obra 2013)

 

Excerto
«[...] o debate em torno da actualidade da estética adorniana transformou-se numa discussão sobre pertinência de uma «estética do enigmático». Uma tal estética visaria prolongar o movimento crítico – para Adorno, o «teor de verdade» – da criação artística e da experiência estética, num «uso desregulador da arte». Este, além de permitir escapar à dicotomia entre «soberania» (verdade) e «autonomia» (aparência) e articular as vertentes afirmativa e negativa da arte, constituiria um modo de disseminar, para além da esfera estética, o potencial crítico da arte – potencial de diferendo e de dissenso –, potencial cujo destino permanece decididamente em aberto.»


  

“Cinza” de Rosa Oliveira, Tinta-da-China (Prémio Pen Primeira Obra 2013)


Sinopse
«"Cinza" é o primeiro livro de poemas de Rosa Oliveira. Cinzas daquilo que fica da memória, ou de uma ideia vaga de "futuro", cinzas que são a melancolia a que chamamos "presente", tempo que passa depressa-devagar, como em Ruy Belo, várias vezes citado. Esta poesia "confessional", mas tão privada quanto política, faz-se da comoção estilhaçada da "Magnólia" de Paul Thomas Anderson mas também das invasões bárbaras que assombram a Europa, invasões que não vale a pena temer, porque já triunfaram. Conceitos como a relatividade e a turbulência ligam misteriosamente as leis da física e a batalha de Waterloo, a destruição de Pompeia e a luta de classes. Rosa Oliveira usa a alusão, a colagem, a sabotagem semântica e o sarcasmo para descrever mudanças, instantes, hiatos irrecuperáveis, tempos perdidos, maravilhas banais da nossa idade. Nos jardins da Gulbenkian como em "santa-clara-a-reciclada", vislumbramos pequenos medos, pequenos nadas, a memória de uma canção, uma vida que talvez esteja acima das nossas possibilidades.»

Por Pedro Mexia

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Paraíso dos livros: Colecção “Biblioteca da Academia”


Em tempos queixei-me por aqui de que a literatura brasileira era um pouco maltratada em Portugal. De facto, tirando Jorge Amado, Paulo Coelho e talvez Rubem Fonseca, os restantes autores brasileiros são publicados de forma errática. Se entrarmos em clássicos então, o panorama ainda se torna mais negro. Mas se nem os nossos autores clássicos acarinhamos, quanto mais os de outro país!

E é por isso que a colecção “Bibioteca da Academia”, resultante de uma parceria entre a editora Glaciar e a Academia Brasileira de Letras, é tão significativa. Num gesto de profunda coragem a Glaciar dá uma lição às grandes editoras ao mostrar que a iniciativa pode muitas vezes mais do que os recursos, conseguindo implementar um projecto com um horizonte de cinco anos, no qual 25 obras de 25 notáveis da literatura brasileira serão publicadas. Com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian na divulgação, haverá anualmente uma sessão, no dia 29 de Setembro (o dia do nascimento de Machado de Assis), em que serão apresentados os cinco volumes publicados nesse ano.

As obras a serem incluídas nesta colecção abrangem tanto a ficção, como o ensaio e a poesia, estando previsto que até ao final de 2014 seja ainda publicado o romance “O Ateneu” de Raul Pompeia. Para já são quatro os livros editados: uma colectânea com os nove romances de Machado de Assis (“Ressurreição”, “A Mão e a Luva”, “Helena”, “Iaiá Garcia”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba”, “Dom Casmurro”, “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires”), a “Poesia Completa” de João Cabral de Melo Neto e, na não-ficção, “Os Sertões” de Euclides da Cunha e “Dialética da Colonização” de Alfredo Bosi.

Se tudo o mencionado até ao momento já seria suficiente para que este projecto merecesse o nosso aplauso, resta ainda referir que todos os volumes são apresentados em cuidadosas edições em capa dura, com o design e ilustrações das capas a cargo de Rui Garrido. Por esta altura não é segredo para ninguém a minha adoração por capas duras, mas mais do que isso, o que me fez passar do aplauso à ovação foi a iniciativa de oferecer às bibliotecas públicas portuguesas um exemplar de cada um dos volumes da colecção, para assegurar que há uma difusão de facto da literatura brasileira no nosso país.

Um projecto com pés e cabeça. A Glaciar e a Academia Brasileira de Letras estão de parabéns e, se me é permitido meter uma cunha, uma edição do “Grande Sertão: Veredas” do João Guimarães Rosa seria melhorar o que já é perfeito.

domingo, 26 de outubro de 2014

A dependência dos livros - presentes de aniversário


Ao contrário do que o título vos pode levar a pensar, não acabei de fazer anos. Na verdade já passaram mais de quatro meses desde o meu aniversário. Mas então, porquê só agora um post sobre os presentes recebidos? Bom, não há nenhuma razão profundamente lógica. São os males da procrastinação.

Curiosamente, este foi o ano em que recebi mais livros de autores portugueses. Não poderiam faltar a Dulce Maria Cardoso e o Saramago neste lote, é claro, pública que é a minha adoração por ambos. Urbano Tavares Rodrigues e Rentes de Carvalho são dois autores que queria muito conhecer e foi-me feita a vontade.

Mas nem só de literatura nacional se alimenta uma alma, sendo também necessários autores internacionais. E se forem premiado, melhor, como é o caso de “Vida Roubada” de Adam Johnson, que recebeu o Pulitzer no ano passado, e de “As I Lay Dying” do Pémio Nobel William Faulkner (uma belíssima edição da Folio!). E também na categoria internacional, uma autora que há muito andava à procura de um lugar na minha prateleira – Flannery O’Connor.

Para terminar, num tom menos literário e mais musical, que me dizem a uma “Mozipedia”, ou seja, um enciclopédia sobre Morrissey e os The Smiths? A mim parece-me perfeito.

Deixo-vos com a lista completa:

As I Lay Dying” de William Faulkner, The Folio Society
Lôa Perdida no Paraíso” de Dulce Maria Cardoso, Tinta-da-China
Manual de Pintura e Caligrafia” de José Saramago, Porto Editora
Mozipedia” de Simon Goddard, Plume Books
Nenhuma Vida” de Urbano Tavares Rodrigues, Dom Quixote
O Chão dos Pardais” de Dulce Maria Cardoso, Tinta-da-China
O Rebate” de J. Rentes de Carvalho, Quetzal
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar” de Flannery O’Connor, Cavalo de Ferro
Vida Roubada” de Adam Johnson, Saída de Emergência

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Em estado crítico: "No Café da Juventude Perdida" de Patrick Modiano


“A partir daquele momento, houve uma ausência na minha vida, um clarão que não só me causou uma sensação de vazio, como me impediu de ver. Toda aquela claridade cintilava em mim como uma luz viva, radiosa. E assim será, até ao fim.”


À deriva. Caminhando por ruas sem destino, na esperança de que o acaso nos leve a um lugar em que haja um sentido maior que se evidencie e que nos revele quem somos, o que devemos fazer, o porquê das coisas terem acontecido assim. E que essa descoberta nos dê o oxigénio que necessitamos para continuar, para que as miragens se convertam em realidade e das frustrações nasçam forças.

Modiano fala-nos em “No Café da Juventude Perdida” sobretudo de identidade. A memória, elemento comummente associado à sua obra, tem o seu contributo, mas que é secundário face às preocupações existencialistas condensadas na jovem Louki, que um dia, inesperadamente, entra na vida dos clientes habituais do café Condé. Louki? Ou devemos antes dizer Jaqcqueline Delanque? Logo no nome da protagonista a problemática começa-se a evidenciar. Jacqueline deixa que a clientela do Condé a trate por Louki, sem nunca os corrigir, porque no fundo um ou outro nome não fazem a diferença, ela continua sempre a ser a rapariga sem pai, com uma mãe distante, que a deixou deambular sozinha pelas ruas, a tentar encontrar respostas.

Na rua Jacqueline conhece Jeannette, apropriadamente conhecida como Caveira, e naquele momento o seu destino sela-se. Modiano não é muito claro sobre o que une as duas raparigas, deixam-se no ar insinuações de que pode ter ocorrido um episódio de violência sexual com dois conhecidos, mas nada é dito com clareza. O que sabemos é que a presença de Jeannette suscita em Jacqueline más recordações e que há uma certa tentativa de distanciamento quando decide casar com um homem que conhece mal, sem muitas mais razões do que ele afirmar que quer cuidar dela.

Mas o casamento é mais uma deambulação de Jacqueline e apenas serve para que tenha a certeza que aquele não é o seu lugar. E do casamento foge para umas sessões sobre ciências ocultas e, finalmente para o Condé, conhecendo pelo caminho Rolland que, curiosamente ou não, também não é conhecido pelo seu verdadeiro nome.

O percurso de Jacqueline até se tornar em Louki, a namorada de Rolland, é-nos apresentado por Modiano neste breve livro, divido em cinco partes, com a perspectiva de quatro personagens. Modiano, que é frugal na escrita, opta por uma construção da narrativa um pouco mais complexa e sobre a qual tenho algumas dúvidas, porque acredito que se a visão de Rolland ocupasse todo o livro o resultado final seria melhor. Na verdade Modiano é desde o início muito bem-sucedido na construção do ambiente, na espécie de sedução mística em que envolve a figura de Louki, na comunhão na desorientação que caracteriza os clientes do Condé. Mas a verdadeira dimensão do livro só se revela quando Rolland assume o controlo e deixamos de ter uma história interessante para termos algo que pressentimos ter um significado mais profundo.

Mas, contas feitas, que revela “No Café da Juventude Perdida”, o romance que a revista Lire considerou o melhor publicado em 2007, sobre as qualidades de Patrick Modiano? Diz muito. A suavidade de Modiano, a simplicidade da sua escrita, parecem à partida converterem-no num escritor olvidável. Mas é exactamente através dessas dimensões da sua escrita, que ele domina magistralmente, que consegue criar um elo com o leitor, talvez porque de início nos convença que vamos ler um livro emocionalmente distante e contido e, quando baixamos as guardas, nos surpreenda com uma intensidade cirúrgica de beleza delicada. Modiano promete!

“No Café da Juventude Perdida”
Patrick Modiano
Edições ASA

Classificação: 17/20

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Richard Flanagan, o terceiro australiano a vencer o The Man Booker Prize


O The Man Booker Prize for Fiction 2014 acaba de ser anunciado e, no primeiro ano em que o prémio esteve aberto a todos os escritores de língua inglesa e em que se temia a entrada de americanos na corrida, acabou por ser um australiano a levar a melhor: Richard Flanagan com o livro “The Narrow Road to the Deep North”.

Estive a acompanhar o anúncio em directo na BBC e os ingleses de facto são especiais. Os comentadores, logo para começar, criticaram todos os livros, apesar de considerarem o lote de finalistas notável. Ironia das ironias, Richard Flanagan foi o que recebeu comentários mais duros.Que o Booker Prize não tem o prestígio do Nobel já todos sabíamos, mas ter de beijar a Camilla Parker Bowles em vez da Rainha Silvia já é abusar um bocado. Enfim, nada na vida é perfeito.

A cumprir-se a tradição dos últimos anos, alguma editora portuguesa pegará certamente neste livro que virá fazer companhia a “Os Luminares” de Eleanor Catton, o vencedor do ano passado, publicado recentemente pela Bertrand. Até lá, fiquemos com a sinopse:

“The Narrow Road to the Deep North” é uma história de amor entre um médico e a mulher do seu tio, que se desenrola ao longo de meio século.

Retirando o seu título de um dos mais famosos livros da literatura japonesa, escrito pelo grande poeta haiku Basho, a novela de Flanagan tem no seu centro um dos mais infames episódios da história japonesa, a construção da Ferrovia da Birmânia (a Ferrovia da Morte) na Segunda Guerra Mundial.

No desespero de um campo de prisioneiros de guerra japonês na Ferrovia da Morte, o cirurgião Dorrigo Evans é perseguido pelo caso que teve com a jovem mulher do seu tio dois anos antes. Lutando para salvar os homens sob o seu comando da fome, da cólera, da violência, recebe uma carta que vai mudar a sua vida para sempre.

(tradução da sinopse apresentada no site do The Man BookerPrize)

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Patrick Modiano, o Prémio Nobel que quase ninguém conhecia


Quem, fora da França, quando se levantou ontem, sabia quem era Patrick Modiano? Quase ninguém. O próprio Modiano possivelmente duvidava que a Academia Sueca sequer soubesse quem ele era. E lá estava ele, num jardim, a dar um tranquilo passeio matinal, quando a filha lhe liga para lhe dar a boa-nova. Coitado do homem que contava ter um dia normal e de repente tem pessoas da organização do Nobel a quererem entrevistá-lo por telefone. Modiano não consegue esconder o seu nervosismo e surpresa, gagueja, perde-se nas frases, balbucia respostas pouco coerentes. O resultado é este:

(podem ler uma transcrição da entrevista em inglês aqui)

Sempre que o vencedor do Prémio Nobel é um autor desconhecido erguem-se logo vozes. “Tem algum jeito receber cicrano o prémio e beltrano ficar de mãos a abanar?!”, dizem toldados por esse que é o mais nobre dos sentimentos – a indignação. Eu, que até sou uma pessoa que se indigna bastante, no que diz respeito ao Prémio Nobel da Literatura sou todo paz e amor. Se vencer um autor que eu conheça e goste (como no ano passado), perfeito. Se vencer alguém desconhecido, óptimo, porque isso quer dizer que vamos ter a oportunidade de conhecer um novo escritor. Livros serão traduzidos, livros esgotados serão reeditados e todos nós poderemos ler um autor que em princípio será de qualidade e que de outra forma se calhar nunca viríamos a conhecer.

Recebi por isso esta notícia com alegria e, nunca sequer tendo ouvido falar de Patrick Modiano, prontamente me dirigi à Wook onde, por sorte, ainda estava disponível “No Café da Juventude Perdida” a 4.9€, livro que prontamente encomendei e que passados 10 minutos já estava esgotado. Depois pesquisa-se um pouco sobre Modiano e afinal percebemos que às tantas nós é que andámos este tempo todo distraídos. Venceu o Goncourt, o Grand prix du roman de l'Académie française e o Austrian State Prize for European Literature. E até tem bastantes livros publicados em Portugal:

“Domingos de Agostos” e “Um Circo que Passa” editados pela Dom Quixote 
(ambos esgotados)

Na Rua das Lojas Escuras” editado pela Relógio d’Água 
(quase quase a esgotar)

”Dora Bruder” e “No Café da Juventude Perdida” editados pela Asa 
(ambos esgotados)

O Horizonte” editado pela Porto Editora

Após o recato e ponderação inerentes a uma leitura crítica poderemos então discutir os méritos de Patrick Modiano. Para já temos as palavras da Academia, que o elogia pela “arte da memória com que evocou os mais incompreensíveis destinos humanos e revelou o mundo quotidiano da ocupação”. A ver vamos.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Especulações sobre o Prémio Nobel da Literatura 2014


E chegámos à semana do ano em que os escritores mais conceituados do mundo sobrevivem à base de comprimidos de valeriana e de chás de doce-lima. Só o equacionar de que é possível receber o Nobel da Literatura deve ser o bastante para deixar qualquer um à beira de uma apoplexia, afinal de contas não é todos os dias que a nossa vida pode mudar por completo e, no caso do Prémio Nobel, isso acontece mesmo, não é só uma ideia senso-comum.

Pois bem, mas vamos à vaca fria: quem receberá o Prémio Nobel este ano? E comecemos já por expurgar desta conversa o nome de Murakami que, independentemente do que as apostas do Ladbrokes digam, não tem hipóteses nenhumas de ganhar o prémio, por não ter suficiente relevância literária (só li um livro dele mas cheira-me que não vou mudar de opinião) e por ser uma escolha óbvia. Diz-nos a experiência que a Academia não vai em ondas e raramente atribui o Prémio a quem manifesta querer recebê-lo e a quem tem grandes bases de apoio em campanha activa. Continuemos, dizendo que Margaret Atwood também pode estar sossegada no seu canto porque a probabilidade de duas mulheres canadianas receberem o Prémio em anos consecutivos é ínfima.

Dito isto, e tendo por base uma via meramente especulativa, é notório que há uma tendência, desde que Peter Englund assumiu o lugar de Secretário Permanente da Academia em 2009, para pagar dívidas. Vargas Llosa era a grande falha em termos de autores latino-americanos, Tomas Tranströmer era um eterno candidato e há 15 anos que o Prémio Nobel não era atribuído a um poeta, Mo Yan foi apenas o 2º chinês premiado (o que era um desequilíbrio gritante tendo em conta a dimensão do país e o facto do Japão já ter há muito dois laureados) e Alice Munro era uma eterna candidata e quase exclusivamente contista, género ignorado pela Academia até ao momento.

Seguindo a lógica das dívidas, na minha opinião há duas grandes falhas por parte da Academia:
  • Até hoje só receberam o Nobel da Literatura 4 autores africanos
  • Há apenas um laureado de língua portuguesa

E estes são dois problemas que a Academia tem de resolver. Resta saber qual será prioritário. Partindo destes dois grupos, eu aposto, com base no prestígio internacional, em 3 nomes. Se pesar mais o factor africano o vencedor deverá ser Ngũgĩ wa Thiong'o, pelo seu lado político (esteve preso durante 1 ano devido a uma peça de teatro) e por ter estado nos nomes apontados como favoritos nos últimos anos. Se pesar mais o factor língua portuguesa, o Brasil clama há muito por um Prémio que muitos pensavam que acabaria por ser entregue a Jorge Amado. Neste momento Ferreira Gullar parece-me ser dos autores brasileiros aquele com maior projecção internacional, e importa lembrar que para poder ser eleito para o Prémio Nobel tem de se ser nomeado previamente e a dimensão internacional tem nesse âmbito um papel fundamental.

Mas a minha grande aposta é uma 3ª via, a que concilia os factores África e língua portuguesa: Mia Couto. Será? Terá Mia Couto hipóteses? Certamente que tem e bastam dois argumentos: a vitória do Neustadt International Prize no ano passado (considerado o prémio literário de maior prestígio a seguir ao Nobel) e o facto de “Terra Sonâmbula” ser considerado um dos 12 melhores livros africanos do século XX.

Enfim, tudo isto são especulações assentes em critérios lógicos e não necessariamente em méritos literários. Mas quem sabe o que passa pela cabeça dos membros da Academia? Se muito bem calha ainda dão este ano o Prémio ao Philip Roth, depois de ele ter deixado a vida pública, só para contrariar. Tudo é possível!

domingo, 5 de outubro de 2014

A dependência dos livros - edição Setembro de 2014


Estes últimos dias têm sido muito focados no lado comercial, bem sei, mas não podia deixar de partilhar hoje convosco, como habitualmente, as minhas compras do último mês. Para além de 2 presentes de queridas amigas (“Jacques, O Fatalista” de Diderot e “Mais um Número de Feira” de Tom Robbins), Setembro foi um mês de alguma contenção. “Papéis Inesperados” de Cortázar foi comprado na promoção de livros da Cavalo de Ferro na FNAC, pelo que me ficou a metade do preço, e “Olive Kitteridge” de Elizabeth Strout (que parece literatura light mas não é – tem o selo Prémio Pulitzer!) custou-me menos de 3€ numa promoção da Wook. "Descascando a Cebola" de Günter Grass é que não teve direito a desconto nenhum, mas precisava dele para um artigo que vou escrever, pelo que tive de deixar uma nota de 20€ ir à sua vida.

Mas estas compras são secundárias face ao verdadeiro achado que foi “A Sinfonia Pastoral” de André Gide, livro completamente esgotado que tentava comprar há anos e que encontrei finalmente no Sr Teste a 7€. 

A outra grande compra deste mês é “Alabardas, Alabardas,Espingardas, Espingardas”, o último livro de Saramago. A edição é muito cuidada e quis partilhar convosco uma das ilustrações a carvão de Günter Grass. Já se ouvem críticas ao livro, à paginação e aos textos que se juntaram ao pouco que Saramago escreveu. Para mim isso é tudo má vontade. O livro é apresentado como uma homenagem e por isso tem elementos que normalmente um livro não teria. Havendo muito ou pouco escrito, o que interessa é a qualidade, e sobre isso ainda não ouvi grande coisa. Que tal focarmo-nos no conteúdo? Quando ler o livro, o que não será algo imediato, partilharei convosco a minha opinião, sendo que espero que esta seja uma das excepções à minha opinião genérica sobre obras póstumas inacabadas

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Momentos Wook: 3 livros pelo preço de 2


Está uma pessoa em paz e sossego na sua vida quando recebe um email da Wook. Isto de subscrever newsletters de tudo o que é livraria e editora tem este lado: por muito que digamos “afastem de mim esse cálice”, o cálice vem até nós, apanha-nos desprevenidos e, quando damos por isso, já sorvemos todo o seu conteúdo.

Mas voltando à Wook: hoje é dia de “Momentos Wook”, pelo que têm à vossa disposição uma campanha daquelas que não vão poder recusar. A proposta é simples: se encomendarem 3 livros que no site da Wook estejam sinalizados com “!” (não vai ser difícil encontrá-los, porque na verdade quase todos têm esse símbolo) pagam apenas 2. Sim, ouviram bem, é o nosso amado leve 3 pague 2, sendo que o livro de oferta é o de menor valor. Mas não se esqueçam que esta promoção apenas está disponível até às 23:59 do dia 1 de Outubro.

Perguntam vocês: vais encomendar alguma coisa? Respondo eu: tão certo quanto eu morrer sem ler um livro do José Rodrigues dos Santos. Depois de uma análise ponderada cheguei a este trio de peso:

Sempre Vivemos no Castelo” de Shirley Jackson
Deserto” de J. M. G. Le Clézio
Contos do Gin-Tónico” de Mário Henrique Leiria

Vá, percam lá uns minutinhos a selecionar 3 livros que queiram com um preço semelhante, para tirarem maior partido da campanha. Basta clicarem na imagem em cima do texto e começarem a encomendar.

Assírio & Alvim com 50% de desconto na FNAC até 1 de Outubro


A FNAC quer dar cabo das nossas contas bancárias, só pode ser essa a explicação. Eu até senti um calafrio na espinha quando vi que uma selecção de livros da Assírio & Alvim estaria a 30 de Setembro e 1 de Outubro com 50% de desconto, em mais uma iniciativa “Ler com...”, que nos tem apresentado livros de editoras de prestígio a metade do preço. Isto depois de há uma semana esta mesma acção ter sido feita com livros da Teorema e cerca de 1 mês após a promoção com os livros da Cavalo de Ferro.

Não percam esta oportunidade a até à meia-noite de amanhã vão poder comprar livros de Teixeira de Pascoaes, Walt Whitman, Mário CesarinyEzra Pound (o famoso “Os Cantos” passa de 45€ para 22.5€!), Dostoievski Camilo Pessanha como se estivessem na Hora H da Feira do Livro (ah, que saudades!). Atenção: esta promoção está apenas disponível no site.

Quanto a mim, não fui capaz de resistir ao “São Paulo” de Teixeira de Pascoaes e a “O Coronel Chabert” de Balzac. E vocês, que livros vos fizeram cair em tentação?