sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A dependência dos livros: edição Novembro de 2013


Com 40€ euros apenas pode-se comprar muitos livros. Com esse orçamento consegui este mês juntar à minha biblioteca oito obras. É verdade que tive um vale de 10€ da Fnac, mas um vale tem pouco valor se não o soubermos rentabilizar, missão que cumpri ao quase conseguir comprar dois livros com esse modesto pecúlio (tive de fazer o sacrifício de pagar do meu bolso 2€ e pouco). Mas tirando o vale, qual foi o meu segredo? Muito fácil: uma ida à Fyodor Books (que me rendeu quatro livros por 9€), uma mega promoção na Fnac (obras do Italo Calvino com 50% de desconto) e uma grande descoberta (o primeiro volume do teatro do Prémio Nobel Harold Pinter, editado pela Relógio D’Água, a apenas 5€, também na Fnac). A estas aquisições juntaram-se ainda o 2º volume da Granta portuguesa, comprado na Bertrand, e um dos volumes das obras completas do Bernardo Santareno, que a Pó dos Livros Vintage me conseguiu arranjar.

Aqui fica a lista completa:

Granta 2 – Poder” (Tinta da China)
“Paula” de Isabel Allende (Mil Folhas)
“Catarina de Médicis” de Balzac (Portugália Editora)
“Os Manuscritos de Jeffrey Aspern” de Henry James (Relógio D'Água)
“Tereza Batista Cansada da Guerra” de Jorge Amado (Planeta DeAgostini)
“Obras Completas - 3º Volume” de Bernardo Santareno (Caminho)
As Cidades Invisíveis” de Ítalo Calvino (Teorema)
Teatro I” de Harold Pinter (Relógio D'Água)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Rentes de Carvalho com os portugueses

A Joana Ribeiro anda há 2 anos a falar-me de Rentes de Carvalho, não poupando elogios. E assim foi crescendo em mim uma vontade de o ler, vontade que no entanto ainda não se concretizou. Foi então que há cerca de duas semanas, a propósito do Grande Prémio da Crónica APE que Rentes de Carvalho recebeu por “Mazagran”, decidi ressuscitar um velho projecto: obrigar a Joana a escrever um post. Deixo-vos assim com o primeiro guest post do Sentido dos Livros, esperando que este seja o primeiro de muitos.


A primeira vez que ouvi falar de José Rentes de Carvalho foi há pouco mais de dois anos e logo aí, ignorando por completo o seu universo, fui apanhada de surpresa pela adjectivação forte com que o caracterizavam: "mestre".  De início ainda pensei ingenuamente tratar-se de um desses novos nomes da literatura contemporânea portuguesa sobre os quais se criam cultos, tal era o entusiasmo com que falavam da melhor descoberta dos últimos tempos.

Antes de mencionar as minhas duas experiências com a leitura de Rentes, gostava só de fazer este parêntesis sobre alguns motivos extra-literários que me levam a sentir especial carinho pela figura. Digamos que sou susceptível às circunstâncias pessoais de quem escreve as histórias que eu leio. Pois estamos perante um homem que já ultrapassou os oitenta anos, que distribuiu uma vida longa entre São Paulo, Rio de Janeiro, Nova Iorque, Paris e Amesterdão, que consta ter sido apresentado pela rainha Beatriz ao presidente Sampaio (que não sabia quem ele era?) e que ainda hoje viaja de carro entre Trás-os-Montes e a Holanda umas cinco vezes ao ano. Que continua a escrever e finalmente a ser publicado, com o reconhecimento devido, entre os portugueses – para quem sempre escreveu os seus livros, à excepção de “Com os Holandeses”.
                                                                                      
Comprei então na altura “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” e atirei-me a ele como em busca do Santo Graal. Confesso que inicialmente tive um desapontamento instantâneo, porque não tinha percebido que se tratava de um livro de contos e talvez ainda estivesse sob o 'mindset’ pedrosiano que reserva apenas e só ao romance a categoria de grande literatura. Talvez Rentes tenha sido o primeiro a ajudar a desfazer essa barreira. Mas não só: terá também sido com Rentes que comecei a redescobrir o prazer incomparável de ler prosa bem escrita na língua portuguesa. Admito que as histórias de “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” possam não apelar a toda gente. Reportam-se a maioria das vezes às décadas do pré-25 de Abril, relatos ficcionados sempre numa primeira pessoa que parece ir diferindo vagamente de uma história para outra (ou talvez não), cujas peripécias parecem confundir-se com as que o próprio Rentes terá vivido ou ouvido contar, num tom confessional e de grande transparência perante o leitor. Com uma linguagem muito próxima da oralidade que se revela fonte inesgotável sobre costumes, manhas, expressões, etiquetas. Poderia destacar vários contos, mas escolho para meu favorito um que faz essa síntese entre a mundividência do homem feito nas megalópoles e a simplicidade rústica das terras do norte de Portugal, dois pólos que perpassam todo o livro. Em “O Enterro de Meus Pais”, lemos sobre a longa e tortuosa viagem de um português, de Amesterdão até uma aldeia perdida nos confins transmontanos, para o funeral do pai. Será também, perante o fundo significado dos rituais de comunidade e luto, a constatação súbita de uma incapacidade a roçar o infantil e da «consciência da própria insignificância». Cito também com curiosidade a observação final de “O Incêndio de Lisboa”, em que o emigrante, sempre nostálgico da juventude vivida no Chiado, regressa a Lisboa de propósito para ver o que resta do incêndio nos armazéns e concluir que «os escombros parecem-me ainda mais terríveis e desesperados, ao mesmo tempo símbolo e sinal de mau agouro num país onde, mau grado a democracia recuperada, a vida da maioria continua a ser uma longa espera imponente e triste entre coisas que apodrecem e coisas que ardem».

Extremamente divertida foi a leitura de “Com os Holandeses”, que comprei pouco tempo depois de ter viajado por diversas cidades e vilas holandesas. Mesmo considerando as inevitáveis mudanças ocorridas desde a publicação original em 1971, reconheci com deleite os diversos choques e estranhezas que um meridional sofre às mãos de um povo fanático pela organização, a eficiência e o lucro, naturalmente sensaborão e avesso a espontaneidades - apesar de tudo ter para que a vida lhe corra doce, desprezador da culinária como algo mais do que a satisfação de uma necessidade, suspeitoso de tratos delicados e subtilezas (que pretende este?), e por aí fora. Sorri quando reconheci, entre outros, os «croquetes insípidos e os sacos de batatas fritas do automatik da esquina» com que os jovens que vão jantar fora se contentam. E o aparto total de afectos entre pais e filhos? Só me lembra a minha mãe quando diz, com o desconsolo de alma português, que na Inglaterra onde o meu irmão está emigrado, e que ela pouco ou nada conhece, eles não sentem a família como nós. Eis o retrato da típica mulher holandesa que alugou o quarto a Rentes de Carvalho e que anos mais tarde recordava tê-lo tratado como mãe:

«A Holanda nesse tempo só ia de férias para onde lhe garantissem as batatas cozidas e o estufado nacional, e os meus temperos e óleos agrediam o nariz da dona como murros. Vinha inspeccionar o azeite, o colorau, o alho, sem nela pegar examinava a folha de loureiro, tudo venenos voláteis que espalhados pela casa lhe punham a saúde em perigo. Abria as janelas e informava os vizinhos da minha culpa, porque também eles se doíam. Obrigou-me à promessa de não fazer fritos. Reduziu-me o fumar, porque o tabaco amarelece as paredes, os cortinados, levantando assim despesas de pintura e de lavagem. Pediu-me que não fizesse barulho no corredor, que não entrasse tarde, não lesse de noite, me levantasse cedo.»

“Com os Holandeses” e outros títulos de Rentes de Carvalho foram, ironicamente, grandes êxitos no país que o acolheu. Em Portugal só nos resta recorrer ao ditado: mais vale tarde do que nunca.

Por Joana Ribeiro


Livros de J. Rentes de Carvalho publicados pela Quetzal:


terça-feira, 26 de novembro de 2013

"E a Noite Roda" vence o Grande Prémio do Romance e da Novela APE



Sinopse do livro


Ana e Léon conhecem-se em Jerusalém na véspera da morte de Yasser Arafat. Aí começa uma história que atravessa várias cidades e paisagens, da Faixa de Gaza à Mancha de Quixote, enquanto o mundo exterior se vai fechando num quarto sem saída.

«Toda a praça roda à minha volta e tu és um buraco negro. Então o sol dá-te em cheio. Estás encostado à fonte, depois da estátua de Giordano Bruno, que há 400 anos foi queimado por dizer que nós é que rodamos à volta do sol. Fumas uma cigarrilha, chamas-te Léon. És um desconhecido e és tu. Qual deles vais ser?»

«E a Noite Roda» é o primeiro romance de Alexandra Lucas Coelho, tendo sido editado pela Tinta da China.


Curiosidades sobre Alexandra Lucas Coelho:


Correspondente do Público no Brasil e autora do blogue Atlântico-Sul.


Outros livros da autora:


Oriente Próximo (Relógio D’Água)
Viva México (Tinta da China)
Vai, Brasil (Tinta da China)
Caderno Afegão (Tinta da China)

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Reler Ondjaki



“Entrou na igreja com um passo miúdo, sem fazer barulho. Era de manhãzinha e já tinha acontecido a primeira missa. Respirou o ar que lá estava, sentiu uma delicada religiosidade penetrar-lhe os pulmões e o coração. A beleza da arquitectura, a luz filtrada pelos vitrais, a manhã e o momento, a ausência do padre, fizeram-no começar o assobio. Descobriu, ao fim da primeira música, que se tratava de um dos melhores sítios do mundo para assobiar melodias.” 

Em "O Assobiador" de Ondjaki


Quando foi anunciado que Ondjaki tinha vencido o Prémio Saramago 2013, com o livro “Os Transparentes” (editado pela Caminho), preparei-me para escrever sobre este autor, e não em termos elogiosos. Em tempos a Visão fez uma colecção a que chamou Frente e Verso e que reunia, de cada um dos lados, um livro, uma obra em prosa e outra em poesia de um mesmo autor. Na altura comprei por acaso a revista que tinha o livro de Ondjaki, com “O Assobiador” e “Há Prendisajens com o Xão”. Não fiquei maravilhado. A prosa deixou-me indiferente e a poesia, com aquele hábito comum a outros autores africanos de inventar novas palavras, marcou-me pela negativa, ao ponto de nem sequer considerar dar uma segunda oportunidade ao autor, como habitualmente faço.

E assim, Ondjaki saiu da minha vida. De vez em quando ouvia falar nele e pensava sempre no livro de poesia que tanto me desagradou. Com o anúncio do prémio e a preparação do artigo deparei-me com algo estranho: não me lembrava de absolutamente nada de “O Assobiador”. Como o livro é bastante pequeno decidi relê-lo e tive uma agradável surpresa quando percebi que estava a gostar bastante. Não se pode dizer que seja uma grande obra, nem um romance incontornável mas, na sua simplicidade, “O Assobiador” consegue recriar um universo que por vezes nos traz à memória Jorge Amado. Um grupo de personagens peculiares, que testemunham episódios místicos que fogem à sua compreensão, tudo motivado pelo poder metafísico de um assobio. Muito interessante, sem dúvida.

Mas se me surpreendi com um dos livros, confirmei também os meus sentimentos em relação ao outro. Não se pode dizer que a poesia de “Há Prendisajens com o Xão” seja inspirada. Há demasiados jogos fonéticos, demasiado empenho em criar elementos de interesse na forma, que nos tenta distrair de um conteúdo pobre. Não recomendo.


Retiro desta experiência um interesse que tinha perdido por Ondjaki e o desejo de ler “Os Transparentes”, na esperança de ver os sinais auspiciosos que encontrei em “O Assobiador” adquirirem um maior relevo. De facto, o mesmo livro, lido em diferentes momentos, pode ser visto de uma forma totalmente diferente.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Recordar Doris Lessing


O momento em que um grupo de jornalistas anuncia a Doris Lessing que acabou de ganhar o Nobel da Literatura é um clássico, uma inesgotável fonte de diversão. “Oh Christ!” diz Lessing, como quem diz “Isto agora é que não vinha nada a calhar! Se eu soubesse não tinha ido às compras e tinha-me arranjado um bocadinho melhor”. A surpresa de Lessing era de resto bastante representativa do sentimento de quase todo o mundo literário.
  
Há uns meses li um artigo na New Yorker que vos recomendo vivamente, intitulado “Doris Lessing and the Perils of the Pseudonymous Novel” e que, a respeito da revelação de que J. K. Rowling tinha escrito um livro usando um pseudónimo, recorda um feito semelhante de Doris Lessing, que apresentou “The Diary of a Good Neighbour” a uma editora como sendo a primeira obra de Jane Somers. O livro foi absolutamente dilacerado por um jovem leitor contratado pela editora (o penitenciado autor do artigo, importa referir), facto que na altura gerou muita polémica. O que levanta muitas questões sobre os méritos próprios dos livros e a forma como o prestígio de um autor condiciona a crítica, mas isso será tema para aprofundar noutra altura.

Agora que Doris Lessing morreu, momento propício a reflexão, não deixa de ser importante referir que a edição das obras desta autora em Portugal tem sido errática e estranha, estando dispersas por várias editoras (Presença, Ulisseia, Europa-América, Cotovia…) e sem que"The Golden Notebook", o livro mais importante da autora, tenha sido publicado. 

Quanto à minha relação com Lessing, até ao momento comprei dois livros seus, “O Sonho Mais Doce” editado pela Presença e “Gatos e Mais Gatos” da Cotovia, mas confesso que ainda não li nenhum, pelo que não posso defender a sua qualidade literária, embora tenda a acreditar que um autor que ganhe o Nobel tem de ter qualidade (teoria que acidentes de percurso, como Herta Müller, me levam a questionar). Mas pode ser que alguma editora portuguesa se lembre entretanto que “The Golden Notebook” existe e nos surpreenda, compelindo-me a ler Doris Lessing com urgência. Será?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Discurso Directo: O livro da vida de Rentes de Carvalho


“Eça de Queirós escreveu guiões de cinema antes de haver filme.” (Rentes de Carvalho no programa "Ler +, Ler Melhor" da RTP2)

Rentes de Carvalho foi o vencedor deste ano do Grande Prémio da Crónica da APE (Associação Portuguesa de Escritores) com o livro "Mazagran", editado pela Quetzal.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Desbloqueadores de conversa sobre literatura: O Mia Couto ganhou o Prémio Neuquê?!


Há umas semanas 99% dos portugueses nunca tinham ouvido falar no Neustadt. Mas tudo mudou de figura na semana passada quando Mia Couto foi anunciado como o vencedor deste ano do Prémio, e agora a percentagem de desconhecimento deverá ter descido para os 90%. Sim, porque no caso do Neustadt o nível de prestígio é directamente proporcional à não divulgação do prémio, pelo menos fora dos EUA.

Mas afinal de onde saiu o Prémio Neustadt? Bom meus caros, tenho a dizer-vos que também eu cobri a minha cara com vergonha quando, há uns meses, o descobri e me apercebi que estava perante o segundo prémio literário internacional mais importante. Sendo um prémio concedido pela obra e não por um livro em específico, o âmbito do Neustadt é muito semelhante ao do Nobel: são elegíveis escritores de todas as nacionalidades, sejam ficcionistas, poetas ou dramaturgos, havendo no entanto o condicionante de que parte significativa da sua obra tem de estar traduzida em inglês. Mas em termos de processos de selecção o Neustadt aproxima-se mais do Booker, sendo para cada edição nomeado um júri pelo Director Executivo da World Literature Today (o único membro permanente) e cada membro sugere um candidato, formando-se assim uma shortlist que servirá de base às deliberações que decorrem na Universidade de Oklahoma.


Até ao momento o Prémio Neustadt foi atribuído a 22 escritores, 4 dos quais mulheres, 4 dos quais vencedores também do Nobel da Literatura. Mia Couto foi o segundo lusófono premiado, tendo o prémio sido concedido anteriormente o brasileiro João Cabral de Melo Neto. Portugueses só mesmo na shortlist, tendo sido nomeados Saramago (em 2004), Lobo Antunes (em 2002) e Alberto de Lacerda (em 1980) – serei o único a nunca ter ouvido falar em tal pessoa?

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Em estado crítico: "Fugas" de Alice Munro


A vida tem uma forma incontrolável de nos afastar do nosso potencial. Uma força violenta e indestrutível que nos arrasta para caminhos que não são aqueles que queremos percorrer, sem que nada possamos fazer para o evitar. Alice Munro percebe isso melhor que ninguém, a crueldade de vermos desde cedo os nossos planos comprometidos, porque por muito que corramos, nada mais encontraremos do que aquilo que nos está reservado. E essa é uma moral que percorre os oito contos que compõem “Fugas”, editado em Portugal pela Relógio D'Água.

Munro ilustra o despedaçar das expectativas pela justaposição de extremos: em muitos contos, a um início promissor, na juventude, em que se revelam possibilidades, segue-se de imediato a velhice, e a percepção de que as possibilidades são geralmente pontos de interrogação para os quais não há resposta prevista. É o que acontece em “Truques”, por exemplo, em que a jovem Robin crê que a solução para uma vida que se adivinha ser dedicada a cuidar da irmã doente está num homem que conhece numa ida ao teatro. Por muito que a vontade de Robin de mudar o curso do seu destino seja grande, não o é o suficiente para ultrapassar o choque de um encontro inesperado. E passados anos Robin encontrar-se-á onde não queria estar, duramente consciente da vida que ficou por viver.

Também em “Forças Ocultas” há essa passagem abrupta do tempo. Numa página temos a impetuosa Nancy, cheia de planos e de desejo de partilhar a vida com o homem que ama. Na página seguinte a Nancy que se nos apresenta é uma derrotada, conformada com uma proximidade com o marido que nunca será alcançada e confrontada com o efeito ainda mais nocivo do tempo sobre aqueles com quem partilhou um período tão excitante da sua vida.

Mas nenhum exemplo será melhor do que o da trilogia “Acaso”/”Em Breve”/”Silêncio”. Começamos a ler “Acaso” sem a noção de que voltaremos a encontrar Juliet nos contos seguintes e, por isso, habituamo-nos à ideia de perdê-la dali a poucas páginas, enquanto acompanhamos as suas viagens rumo ao desconhecido, numa procura ansiosa pela mudança. Quando “Em Breve” começa, reencontramos Juliet passados poucos anos e percebemos que tudo se conjugou para que aquilo que desejava se concretizasse. Mas em “Silêncio”, 20 anos depois, o caminho bem sucedido revela as suas agruras e Juliet é atacada por onde menos espera. Aquilo que aconteceu nesses 20 anos é-nos eventualmente contado, mas o choque entre “o que deveria ser” e “o que é” é vincado pelo impacto inicial. 

Esta trilogia é de resto um dos exemplos mais notáveis dos talentos de Munro. A forma como discretamente as três histórias se interligam, como um simples acontecimento num dos contos nos dá uma chave para algo que acontecerá no futuro, fez-me lembrar a Trilogia das Cores do cineasta Krzysztof Kieslowski. Não é por acaso que Christa é mencionada em “Acaso”, tal como a discussão com o pastor Don em “Em Breve” também não é inocente. Mas talvez o facto mais interessante destes três contos seja aquilo a que não assistimos em “Em Breve”, por estarmos focados em Juliet e não podermos olhar para o que passa noutras paragens, e que só ficaremos a saber em "Silêncio". Uma teia primorosamente tecida.

Todos os contos de “Fugas” são excelentes. Talvez o menos bem conseguido seja “Forças Ocultas”, pela mistura de formatos no início (diário, depois narração, depois carta, depois narração) e porque há algo na história que simplesmente não funciona muito bem. Mas perante a qualidade do que lemos até ali, é com prazer que acompanhamos estas 50 páginas finais, mesmo que não sejam tão boas quanto o resto.

Por muito que tenha gostado dos contos de Juliet, a história que mais me marcou foi a de “Fugida”, pela riqueza de imagens que Munro usa e a forma decidida como constrói uma relação perversa entre Clara, Clark e Sylvia, envolvendo o leitor deste o início num ambiente de ansiedade, com um sentido de perigo iminente. A forma como a cabrinha Flora é utilizada na história e a incerteza dos últimos parágrafos do conto são um exemplo do que uma escritora genial consegue fazer com tão pouco.

“Fugas” é um livro surpreendentemente bom, uma ode às potencialidades do conto, tantas vezes visto com um género menor. Mas mais que isso, “Fugas” é o testemunho do talento de uma escritora que permanecerá por muitas gerações como uma referência. E quem pensa que as histórias de Munro são delicodoces e inocentes está redondamente enganado. Munro habita o mais complexo e perigoso dos mundos, o da vontade humana, uma vontade que muitas vezes é apenas isso, uma vontade.


Classificação: 18/20

O que é que a Granta tem? “Diário de um fumador” de Simon Gray



Equilíbrio. A boa escrita é um jogo de equilíbrio, um tapa e destapa constante que envolve o leitor, proporcionando-lhe uma viagem emocional, e não apenas  a leitura das palavras que alguém escreveu. Seria demasiado fácil para Simon Gray apresentar-nos um relato dramático da doença e dos inconvenientes da velhice, ainda por cima no formato de diário, tão convidativo a um tom excessivamente confessional e frequentemente indulgente. Mas Simon Gray não quer lágrimas, se algo o move é a partilha das histórias e dos pensamentos que ainda tem em si.

A doença e a velhice estão lá, mas quase sempre vivenciadas por outras pessoas: Harold Pinter, por exemplo (sim, estamos a falar do vencedor do Prémio Nobel da Literatura), ou um homem cujas peripécias Simon acompanha ao longe, durante as férias, e a que carinhosamente chama o “Sr. Alzheimer”, embora no final comece a ter dúvidas que ele tenha de facto Alzheimer. Na preocupação com a doença de Harold Pinter percebe-se um efeito espelho, uma preocupação consigo próprio e com a doença que o assombra, mesmo que inconscientemente, ou não fosse ele um fumador convicto.

Pelo meio há histórias de infância, algumas melancólicas (o tempo passado na casa dos avós), outras divertidas (a obsessão pela literatura de laivos eróticos de Hank Janson). Há também teorias sobre a importância histórica das hemorróidas, silenciosos conflitos com outros hóspedes pela conquista do melhor lugar no areal do hotel e breves momentos em que o cansaço e um sentimento de derrota se apoderam da escrita.


E é nesta gestão daquilo que nos conta que se revela a excelência de Simon Gray, que domina como ninguém a técnica do diário, à qual confere um registo de oralidade que torna a leitura ainda mais envolvente. Na verdade não estamos a ler algo, estamos a conversar com um amigo, um amigo com muito para contar. Obrigado Granta.

sábado, 9 de novembro de 2013

Os PEN do ano VI: "Groto Sato" de Raquel Nobre Guerra (Prémio Primeira Obra)


Pura


esta gente que colhe água para derramá-la
compassivamente sobre a chaga
esta virtuosa carraça pública
com redentor cigarro público também
esta solidão assediando cretinos e sábios
esta deserta implausível cartada
grande força erguida a prumo

esta gente esta imperial e sopa à frente
esta gente que se levanta de peito e escreve
para não matar ninguém

(poema retirado de “Groto Sato” de Raquel Nobre Guerra, Mariposa Azual)

Os PEN do ano V: "Travessa d'Abençoada" de João Bouza da Costa (Prémio Narrativa)



Sinopse do livro:


Uma criança autista escuta os sons de dois corpos entregues ao sexo e convoca os seus deuses contra a derrocada do tempo. Um tradutor apropria-se, coxeando, da sua cidade, enquanto a música inunda a noite e a sua mulher se debate com a memória. Um velho preso no labirinto da raiva enfrenta a morte caído numas escadas. Pessoas de uma pequena travessa de Lisboa, vinte e quatro horas da vida no mundo.


Curiosidades sobre João Bouza da Costa:


Carteiro, limpador de vidros, vendedor de vinhos, pintor de cenários de ópera, professor, tradutor e intérprete, João Bouza da Costa é o verdadeiro homem dos sete ofícios, ao qual se adicionou um oitavo, o de escritor, e ainda por cima escritor premiado. “Travessa d’Abençoada”, publicado pela Sextante, é o seu primeiro romance.



João Bouza da Costa sobre “Travessa d’Abençoada”:




sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Os PEN do ano IV: "O Cinema da Poesia" de Rosa Maria Martelo (Prémio Ensaio, também)


Uma breve introdução ao livro:


«Os ensaios reunidos neste livro constituem diferentes tentativas de aproximação aos processos de fazer imagem na poesia moderna e contemporânea. Embora trabalhem obras e questões diferenciadas, todos incidem sobre formas de conceber e articular as imagens na poesia, ou sobre os modos como o texto poético se pensa em diálogo com outras artes da imagem, especialmente o cinema.
[...]
 Ao acentuar a visualidade e o visionarismo das imagens verbais, ou a sua tensão e rapidez, a poesia de tradição moderna apresenta-se muitas vezes como uma espécie de cinema, uma arte na qual o fluxo das imagens desempenha um papel determinante. «O cinema extrai da pintura a acção latente de deslocação, de percurso. Tome-se um poema: não há diferença», escreveu Herberto Helder. Como pensar esta similaridade, esta convergência? Em que consiste o cinematismo da poesia? Os autores estudados neste livro encaminham-nos para algumas respostas.”
(excerto do preâmbulo de “O Cinema da Poesia” de Rosa Maria Martelo, Documenta)


Curiosidades sobre a autora:


Investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Organizou a antologia “Poemas com Cinema” em parceria com Joana Matos Frias e Luís Miguel Queirós.


Alguns livros de Rosa Maria Martelo:


Os PEN do ano III:"Salazar e o Poder - A Arte de Saber Durar" de Fernando Rosas (Prémio Ensaio)

Uma breve apresentação do livro:


“A repressão é a resposta para a minoria que não respeita os sinais, as regras explícitas ou implícitas, as rotinas do enquadramento, da submissão, da conformação à ordem estabelecida. Para a maioria que é levada a obedecer, basta que se saiba que a repressão existe e que actua sobre os infractores. No salazarismo, no franquismo estabilizado, no fascismo italiano, ou no nacionalsocialismo alemão antes da guerra, o controlo totalizante da sociedade, a acção dos aparelhos de inculcação e de enquadramento ideológico, se se quiser, a prevenção, foram mais decisivos do que a repressão propriamente dita na estabilização desses regimes.”
(excerto da introdução de “Salazar e o Poder - A Arte de Saber Durar” de Fernando Rosas, Tinta da China)


Curiosidades sobre o autor:


Foi preso duas vezes durante o Estado Novo, tendo sido submetido à tortura do sono. É um dos fundadores do Bloco de Esquerda, tendo sido deputado e candidato à Presidência da República.


Alguns livros de Fernando Rosas:


terça-feira, 5 de novembro de 2013

Os PEN do ano II: "A Terceira Miséria" de Hélia Correia (Prémio Poesia, também)


Um poema de “A Terceira Miséria”:


Poema 33
De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.
(poema de "A Terceira Miséria" de Hélia Correia, Relógio D'Água

Curiosidades sobre a autora:


Hélia Correia é uma repetente nos Prémios do PEN Clube Português, tendo recebido anteriormente o Prémio Narrativa por “Lilias Fraser”. A Grécia Clássica é um tema recorrente na sua escrita, sendo a única escritora a ter contos publicados nas duas edições da Granta Portugal.


Alguns livros de Hélia Correia:


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os PEN do ano I: "Cólofon" de Manuel de Freitas (Prémio Poesia)


Um poema de “Cólofon”:


Lawrence's, Quarto Tradição
Dormes, e eu não. O que tem sido
uma constante, inversamente recíproca,
dos dias e das noites que aceitámos partilhar.

Lá em baixo, a desoras, o rebanho
passa, faz-me ouvir os breves
badalos, entre folhagem seca.
De Lisboa só nos chegam notícias
fúnebres, dispensáveis. Caim deu boleia
a Abel, num automóvel de luxo.
E arrasta-se, entre putas e ladrões,
um tango triste que já não queremos dançar.

É apenas isso. Dorme. Talvez amanhã,
subitamente, o mundo nos pareça perdoável.
(poema de "Cólofon" de Manuel de Freitas, ed. Fahrenheit 451) 


Curiosidades sobre o autor:


Dirige a editora Averno, escreve críticas literárias para o Expresso e é um dos responsáveis pela revista “Telhados de Vidro”.

Alguns livros de Manuel de Freitas:

A Última Porta

domingo, 3 de novembro de 2013