segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Em estado crítico: “Gostamos Tanto da Glenda” de Julio Cortázar


Gostar é perigoso. Gostar pressupõe ter expectativas, conceber ideais com os quais se confronta a realidade. Mas acima de tudo gostar implica um investimento, uma entrega, o que poderá constituir uma fraqueza fatal. Com uma tendência natural para se preocupar com o lado emocional, Julio Cortázar explora nos 10 contos de “Gostamos Tanto da Glenda”, editado em Portugal pela Cavalo de Ferro, as enfatuações emocionais nas suas diversas formas e as suas consequências imprevisíveis.

Gostamos Tanto da Glenda, o conto que dá o nome ao livro, deixa uma mensagem clara: o amor pode ser uma porta para actos ignóbeis, quando o objecto do amor não se comporta de acordo com o que é esperado. Assim, passamos de um grupo de fãs de Glenda, uma famosa actriz, capaz de fazer tudo para que ela seja bem-sucedida, para de repente termos um grupo disposto a matá-la em nome desse suposto amor, para que não estrague a imagem de perfeição criada para si.

Um perigo diferente é o de Orientação dos Gatos, em que é o olhar frontal de Alana, a mulher amada que, juntamente com o do gato Osíris, gera um mal-estar, que se contrapõe ao deleite sentido pelo narrador quando vê Alana admirar quadros. Por um lado há uma questão de foco: quando Alana e o gato o olham forma-se uma unidade da qual ele não pode fazer parte, uma vez que ele não se pode olhar; por outro lado, ao olhar os quadro Alana tem uma atitude reactiva, a forma como age é suscitada pelo que lhe comunicam os seus sentidos e quando o olha a ele com entrega no olhar há uma racionalização, uma intenção de lhe enviar uma mensagem. O olhar frontal de Alana é por isso uma espécie de confrontação que pode levá-lo a questionar-se. E por vezes nem um olhar é necessário, basta ceder a um desejo latente para entrarmos em terrenos minados. Em Histórias que Me Conto, a realidade da ficção é posta em causa quando o narrador descobre que a fantasia sexual que inventou com Dília, uma amiga sua e da sua mulher, aconteceu na realidade mas com outro homem. Uma partida do acaso ou uma espécie de fenómeno místico?

O que conto que foge mais a esta lógica é Texto num Caderno, em que o controlo estatístico das entradas e saídas do metro revela uma surpresa: por vezes o número de pessoas que entram é superior ao das que saem e, outras vezes, o número das que saem é superior ao das que entram. O narrador entrega-se então, mas em vez de a um sentimento, entrega-se emocionalmente à descoberta do que se passa, colocando de lado a possibilidade de haver erros de medição e desenvolvendo uma teoria baseada em factos casuísticos e pouco claros de que há uma sociedade que vive no metro. E rapidamente essa teoria deixa de corresponder a um desejo de descobrir a verdade, para se converter numa obsessão.

Cortázar brinca com o leitor, diverte-se a questioná-lo, coloca-lhe puzzles à frente e desafia-o a resolvê-los. E há dois momentos no livro, os dois contos que se elevam sobre os outros, que são bons exemplos disso mesmo. História com Aranhas começa com um simples e aparentemente inofensivo relato dos dias de férias de duas pessoas que têm como vizinhas no seu bungalow duas jovens. Há desde o início uma grande tensão sexual, mas nunca há um contacto efectivo, há noites passadas na escuridão a ouvir barulhos, há a espera de um sinal, memórias de acontecimentos passados não muito claros. E no final… uma surpresa. Um desafio à percepção.

O outro momento é Recortes de Imprensa, em que também a realidade da ficção é questionada quando a personagem principal, uma escritora, vive uma situação que descobre depois ter sido descrita na imprensa dias antes. E mais uma vez nos questionamos: terá ocorrido um fenómeno paranormal? Ou a entrega da escritora à sua escrita é tal que há elementos da realidade com os quais contacta e que inconscientemente os converte em seus?

Julio Cortázar não nos dá respostas. Lança-nos cenários e espera que retiremos deles o que conseguirmos, que sejamos nós a criar uma ordem, se é que é possível fazê-lo. Ler “Gostamos Tanto da Glenda” é por isso uma entrega à reflexão, à admiração perante o absurdo com que nos deparamos, com todos os contos a terem algo que os inscreve na nossa mente, entretidos que estamos na procura de um sentido último para tudo.

Classificação: 17/20

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