segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Em estado crítico: "Casa de Campo" de José Donoso

“Não foi este – que alguém me comesse – desde sempre o meu destino, já que sou uma delícia? Quem, então, melhor que vocês? Eu queria que prosseguíssemos esta aventura juntos, mas não consigo e esta será outra forma de o fazermos. E poderão salgar aquilo que sobrar da minha carne com a água salobra da nascente para que não se decomponha e levá-la convosco, para comerem pelo caminho: assim, estaremos juntos por mais algum tempo.” (in "Casa de Campo" de José Donoso, Cavalo de Ferro, p. 340)


A personagem central de "Casa de Campo" não aparece mencionada na lista de irmãos e primos que é apresentada no início. Não é um Ventura, nem um serviçal, mas também não é um antropófago selvagem, um nativo. Donoso concede as chaves da imensa casa senhorial que serve de palco à acção a um narrador omnisciente que, em vez de se esconder do leitor, se evidencia a cada página, interpelando-o, alertando-o recorrentemente para o carácter ficcional da história. Esse distanciamento face à história justifica-o com um propósito pedagógico: as acções dos Ventura devem ilustrar as consequências de certos actos, funcionando como símbolos, porque a crueldade de algumas experiências supera o que poderíamos suportar de uma história dita real.

Mas o quão fantasiosa é a história exemplar que Donoso, através do narrador, nos vai contando? Sim, os Ventura podem não ter sido pessoas reais. Marulanda, a luxuosa e misteriosa propriedade, poderá também não ter existido. Mas a essência da história que nos é contada não é mais do que uma grande analogia da forma como o poder é exercido em sociedade. Tudo começa com os divinos pais, os detentores históricos do poder, que criaram as suas próprias regras e vivem uma vida baseada em convenções, num sistema aperfeiçoado por séculos e séculos, no qual não há espaço para preocupações concretas.

Mas um poder tão definitivo, um sistema tão fechado, defronta-se sempre com um problema: os excluídos. Enquanto os excluídos foram apenas os nativos, que focados na sua subsistência secundarizavam o direito à autodeterminação, o equilíbrio manteve-se. Mas quando os filhos dos Ventura, perspicazes e cultos, começaram a pensar pela sua cabeça, o perigo começou a espreitar. O mal-estar era óbvio, embora os Ventura não o percebessem, mas faltava algo para que a situação pudesse mudar: um líder. Acontece que, para além das crianças e dos nativos, havia outro excluído: Adriano Gomara, o marido de Balbina, a irmã mais nova dos Ventura. Adriano, procurando ultrapassar as barreiras que existiam entre a família e os nativos, viu-se, numa espectacular sequência de eventos, fechado num quarto, catalogado como louco. Mas livre, entre os primos, ficou o seu filho, Wenceslao, um astuto rapaz que a mãe vestia de menina, e que será a força que irá desencadear a mudança. E chega a Revolução.

Afastados da casa por um elaborado plano, os Ventura abrem o flanco para que se apropriem do seu poder. E, num período de tempo que os Ventura, talvez inspirados pelas suas raízes históricas, consideram ter sido apenas um dia, e que as crianças revolucionárias, deixadas para trás pelos pais, acreditam tratar-se de um ano, tornam-se óbvios os perigos da tomada do poder por mãos idealistas e inexperientes. Adriano, visto como um Messias e demasiado concentrado na apropriação do poder, não definiu um plano para a fase posterior. Viu-se assim a mãos com muitos ideais, mas poucas soluções para os cumprir e assegurar a subsistência de todos. Porque numa terra em que só há direitos, depressa apenas o nada haverá para partilhar. Não era também este o mundo que Wenceslao queria e, confrontado com a incapacidade de liderança do seu pai, afasta-se e espera que um sistema que não tem como se manter de pé caia.

Não tendo os Ventura meios para combater a Revolução, têm de se servir dos seus criados, que tentam restabelecer em Marulanda um sistema reminiscente do original, mas que não poderá nunca ser o mesmo, perdida que está a inocência de todos. Mas no fim, no fim são factores exógenos que determinarão o destino. Um deles, um produto rejeitado por todos os sistemas: Malvina. Filha ilegítima de Eulália, mulher de Anselmo Ventura, Malvina foi desdenhada pela família, que lhe cerceou os direitos, embora não a renegasse explicitamente. Malvina carregava assim uma marca, que a afastava também dos seus primos, face a quem a faziam sentir inferior. É na vida de desdém e de silêncio que Malvina planeia a sua ascensão, para que um dia os Ventura não sejam mais do que meras sombras no seu caminho.

“Casa de Campo” é, sem dúvida, o romance mais original que já li. A escrita de José Donoso tem uma teatralidade incomparável, que nos enreda nas suas expressões pomposas, nas opções destemidas, nos ensinamentos implícitos, nas personagens tão frágeis, tão unidimensionais, que noutro livro poderiam ser um defeito mas que neste, fruto de uma intenção declarada, se tornam em obras de arte por direito próprio. Consciente dos méritos da sua escrita e da sólida base que construíra, capaz de assegurar a coerência de qualquer elemento que pretendesse inserir na história, Donoso dá-se mesmo ao luxo de a meio do livro se sentar no café com uma das personagens, falando sobre o livro e as suas personagens, num mundo paralelo, numa espécie de supra-realidade.

E talvez também por isso Donoso não se tenha esforçado por nos dar o final que esperávamos, mas apenas uns esboços de cenas épicas que conservam em si muito pouco de conclusivo. O que até faz sentido, tendo em conta o carácter infindável da luta pelo poder. Haverá sempre Venturas. Haverá sempre Revoluções. E o poder terminará sempre nas mãos de quem menos se espera.

Classificação: 18/20



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