Uma
cadeia, um cemitério e uma roseira brava. Assim começa Nathaniel Hawthorne a
história de “A Letra Encarnada”. E, numa pequena descrição de duas páginas, o
essencial é dito, sem ser necessário dizê-lo palavra por palavra: na história
que nos vai ser contada haverá um crime, alguém morrerá e tudo terá uma motivação
passional.
Mas
porquê “A Letra Encarnada”? O que levou Hawthorne a escolher um título à
partida pouco claro e desinteressante? A explicação está contida na própria
história e no ângulo escolhido por Hawthorne para contá-la. A letra encarnada é
o símbolo que Hester Prynne se vê condenada a utilizar cozido na roupa, junto
ao coração, como pena por ter cometido um dos maiores pecados de acordo com a
moralidade então vigente: ter engravidado sem ter junto a si o seu marido. Hester
tinha sido enviada para o Novo Mundo pelo marido, que deveria segui-la, mas de
quem não havia notícias há um par de anos. Pensando que o marido teria morrido,
Hester cai na tentação de amar outro homem. O que ninguém sabe é que esse homem
é o padre Arthur.
Mas então,
com um tema tão sugestivo, para quê este título? Porque não “O Crime do Padre
Arthur” ou “O Celibatário Pecador”, algo que chocasse consciências e atraísse
leitores com o chamariz do proibido? A razão é simples. O livro de Hawthorne não
tem objectivos moralizantes, pelo menos não no que diz respeito ao pecado de
Hester e do Padre. Eça, em “O Crime do Padre Amaro”, queria expor a atitude hipócrita
e libidinosa do clero. A mensagem de Hawthorne é outra. Apenas sentimos uma
atitude de crítica do autor em relação à sociedade da época e à forma como
julga os comportamentos de Hester. São as convenções sociais o principal focus
de Hawthorne, mostrar o quão patéticas são, mas também o quão facilmente podem
ser quebradas. E por isso temos a letra encarnada na capa, para não nos
esquecermos disso.
As
ignomínias vividas por Hester Prynne só o são porque assim estão catalogadas. Hester
não é espancada, não lhe tiram a filha, não a prendem. O seu único castigo é um
acto público de condenação e o símbolo que se vê obrigada a usar. Ninguém a
impede de partir para outro lugar e deixar de usar a letra. O castigo só é
eficaz porque Hester se avexa em parte pelos seus actos e reconhece no
conhecimento público uma fonte de vergonha. Colocando tudo em perspectiva, é
quase ridículo que a vida de uma pessoa seja arruinada por ter de usar uma
letra encarnada bordada na roupa!
Hawthorne
é de resto muito compreensivo com os actos de Hester e de Arthur, havendo no
entanto críticas veladas a Arthur, pela boca de Pearl, a criança que nasceu da
união proibida, que questiona a sua atitude de não a acarinhar em público como
o faz em privado, o que implicaria arcar com a responsabilidade de ser seu pai.
Essa é a maior falha de Arthur, o não assumir perante todos a cumplicidade com
Hester no acto cometido, deixando-a pagar sozinha por tudo. Em momento nenhum
o envolvimento sexual dos dois é apresentado como algo aviltante. Pelo contrário:
num dos momentos altos da história, o capítulo em que Hester e Pearl se
encontram com Arthur na floresta, equaciona-se um final feliz, e que seria a
partida dos três para outro país ou para junto dos indígenas, consumando assim
o amor que os une longe dos olhares de quem os poderia condenar.
Numa história
em que uma mulher casada engravida de um padre seria de esperar que a mulher ou
o padre assumissem o papel de vilão. Mas, a haver um vilão nesta história, será
o marido traído, cuja degeneração se acentua à medida que se deixa consumir
pela vingança, sem nunca conseguir assumir uma importância determinante para a
história. Roger torna-se mais numa manifestação do sentimento de culpa de
Arthur, numa sombra insignificante mas incómoda, que assombra todos os seus
passos.
“A Letra
Encarnada”, editado em Portugal pela Dom Quixote na colecção Biblioteca António Lobo Antunes, é um clássico e não o é por acaso. Nathaniel Hawthorne questiona
moralidades, lança uma luz sobre as motivações humanas e propõem um caminho de
compreensão. Seria fácil fazer de Hester uma personagem acanhada, conformada na
sua desonra. Mas Hester empunha a sua letra encarnada de uma forma quase
orgulhosa porque, se acha que o seu acto merece aquela punição, em certa medida
também a encara como o símbolo do sentimento que a uniu a Arthur e que as
pessoas que a condenam, fechadas que estão num mundo em que as liberdades
individuais são limitadas por axiomas religiosos, nunca poderão sentir. E por
isso a letra encarnada é bordada por ela com requinte, como se de um adorno se
tratasse. Assim esse adorno não lhe tivesse dificultado tanto a vida…
Classificação: 18/20