quarta-feira, 19 de março de 2014

Em estado crítico: "A Letra Encarnada" de Nathaniel Hawthorne


Uma cadeia, um cemitério e uma roseira brava. Assim começa Nathaniel Hawthorne a história de “A Letra Encarnada”. E, numa pequena descrição de duas páginas, o essencial é dito, sem ser necessário dizê-lo palavra por palavra: na história que nos vai ser contada haverá um crime, alguém morrerá e tudo terá uma motivação passional.

Mas porquê “A Letra Encarnada”? O que levou Hawthorne a escolher um título à partida pouco claro e desinteressante? A explicação está contida na própria história e no ângulo escolhido por Hawthorne para contá-la. A letra encarnada é o símbolo que Hester Prynne se vê condenada a utilizar cozido na roupa, junto ao coração, como pena por ter cometido um dos maiores pecados de acordo com a moralidade então vigente: ter engravidado sem ter junto a si o seu marido. Hester tinha sido enviada para o Novo Mundo pelo marido, que deveria segui-la, mas de quem não havia notícias há um par de anos. Pensando que o marido teria morrido, Hester cai na tentação de amar outro homem. O que ninguém sabe é que esse homem é o padre Arthur.

Mas então, com um tema tão sugestivo, para quê este título? Porque não “O Crime do Padre Arthur” ou “O Celibatário Pecador”, algo que chocasse consciências e atraísse leitores com o chamariz do proibido? A razão é simples. O livro de Hawthorne não tem objectivos moralizantes, pelo menos não no que diz respeito ao pecado de Hester e do Padre. Eça, em “O Crime do Padre Amaro”, queria expor a atitude hipócrita e libidinosa do clero. A mensagem de Hawthorne é outra. Apenas sentimos uma atitude de crítica do autor em relação à sociedade da época e à forma como julga os comportamentos de Hester. São as convenções sociais o principal focus de Hawthorne, mostrar o quão patéticas são, mas também o quão facilmente podem ser quebradas. E por isso temos a letra encarnada na capa, para não nos esquecermos disso.

As ignomínias vividas por Hester Prynne só o são porque assim estão catalogadas. Hester não é espancada, não lhe tiram a filha, não a prendem. O seu único castigo é um acto público de condenação e o símbolo que se vê obrigada a usar. Ninguém a impede de partir para outro lugar e deixar de usar a letra. O castigo só é eficaz porque Hester se avexa em parte pelos seus actos e reconhece no conhecimento público uma fonte de vergonha. Colocando tudo em perspectiva, é quase ridículo que a vida de uma pessoa seja arruinada por ter de usar uma letra encarnada bordada na roupa!

Hawthorne é de resto muito compreensivo com os actos de Hester e de Arthur, havendo no entanto críticas veladas a Arthur, pela boca de Pearl, a criança que nasceu da união proibida, que questiona a sua atitude de não a acarinhar em público como o faz em privado, o que implicaria arcar com a responsabilidade de ser seu pai. Essa é a maior falha de Arthur, o não assumir perante todos a cumplicidade com Hester no acto cometido, deixando-a pagar sozinha por tudo. Em momento nenhum o envolvimento sexual dos dois é apresentado como algo aviltante. Pelo contrário: num dos momentos altos da história, o capítulo em que Hester e Pearl se encontram com Arthur na floresta, equaciona-se um final feliz, e que seria a partida dos três para outro país ou para junto dos indígenas, consumando assim o amor que os une longe dos olhares de quem os poderia condenar.

Numa história em que uma mulher casada engravida de um padre seria de esperar que a mulher ou o padre assumissem o papel de vilão. Mas, a haver um vilão nesta história, será o marido traído, cuja degeneração se acentua à medida que se deixa consumir pela vingança, sem nunca conseguir assumir uma importância determinante para a história. Roger torna-se mais numa manifestação do sentimento de culpa de Arthur, numa sombra insignificante mas incómoda, que assombra todos os seus passos.

“A Letra Encarnada”, editado em Portugal pela Dom Quixote na colecção Biblioteca António Lobo Antunes, é um clássico e não o é por acaso. Nathaniel Hawthorne questiona moralidades, lança uma luz sobre as motivações humanas e propõem um caminho de compreensão. Seria fácil fazer de Hester uma personagem acanhada, conformada na sua desonra. Mas Hester empunha a sua letra encarnada de uma forma quase orgulhosa porque, se acha que o seu acto merece aquela punição, em certa medida também a encara como o símbolo do sentimento que a uniu a Arthur e que as pessoas que a condenam, fechadas que estão num mundo em que as liberdades individuais são limitadas por axiomas religiosos, nunca poderão sentir. E por isso a letra encarnada é bordada por ela com requinte, como se de um adorno se tratasse. Assim esse adorno não lhe tivesse dificultado tanto a vida…

Classificação: 18/20

1 comentário:

  1. O livro por levantar questões de consciência, individual e social parece-me interessante, mas gostei de conhecer a etiqueta coleção de António Lobo Antunes pois deduzo que ele recomenda... por coincidência inclui Conrad autor que estou a ler no momento.

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