sexta-feira, 23 de maio de 2014

Em estado crítico: “Tudo São Histórias de Amor” de Dulce Maria Cardoso


“As vidas que li não foram menos minhas. Não há grande diferença entre o que se vive lendo e o que se vive vivendo. Milhares de vidas à nossa espera no silêncio dos livros."
in A Biblioteca

“Não quero amar o que não pode, para sempre, aceitar-me de regresso.”
in Coisas que Acarinho e Me Morrem Entre os Dedos 

“Para que as criaturas fornecessem o bem de que eram capazes era preciso infringir-lhes sofrimento. Mas isso sempre foi um trabalho simples: há sofrimento em abundância neste mundo de Deus e consegui-lo é das coisas mais fáceis.”
in Humal 

“Se ainda soubesse, a velha tinha começado a chorar.”
in Retrato de um Jovem Poeta


O amor. A complexidade do amor não se compraz com os relatos delicodoces de histórias românticas em que amar e ser amado são cores pálidas, paisagens agradáveis em que apetece dormir e esquecer os problemas do mundo. E o lado destrutivo do amor? Não se pode amar submerso na feiura? Amar algo indigno de ser amado? Amar, não uma pessoa, mas uma ideia, um estado de espírito, uma sensação?

Dulce Maria Cardoso revela-nos em doze contos as verdades dos amores, verdades que muitas vezes não queremos ver, que tentamos conscientemente ignorar mas que, na por vezes cruel honestidade das palavras, somos obrigados a reconhecer. Esses amores podem tanto ser o amor de um criminoso pelos livros, como em A Biblioteca, e o eterno debate que levanta sobre a arte enquanto redenção (perspectiva que tanto apoquenta George Steiner – como podiam os dirigentes nazis, responsáveis por tantas atrocidades, apreciar boa arte, ter a sensibilidade necessária para a conseguirem apreciar?), como o amor por algo que não nos pertence, pelo desejo de que seja nosso, pela inveja, tal como acontece em Este Azul que Nos Cerca.

Há em “Tudo São Histórias de Amor” cinco momentos particularmente marcantes, dois dos quais inspirados em histórias que bem conhecemos. Não Esquecerás tem a capacidade de nos fazer saber do que se está a falar, sem que nada em concreto seja dito de início. Começamos numa noite fria e chuvosa, à boleia numa camioneta. Talvez pela vontade de capturar cada instante, pela vontade de que o tempo se congele, percebemos em poucas páginas que vamos em direcção a Entre-os-Rios, que em breve tudo estará acabado. Dulce Maria Cardoso podia ter falado do momento da tragédia, descrito o acidente, mas em vez disso foca-nos nos últimos momentos daquelas pessoas e na crueldade de se ver privado de um amanhã, quem já com ele contava.

Em Desaparecida, ou a Justiça, o outro conto sobre um acontecimento que marcou o nosso país num passado próximo – o caso Joana –, são as sevícias sofridas pela mãe de Joana que ocupam o lugar central. Impressiona-nos a dureza dos actos, que são praticados em nome de uma pretensa verdade, uma verdade que mais não é do que um desejo sanguinário de pecado, do pecado dos outros, de nos regozijarmos com os horrores cometidos pelos outros. É um conto difícil de ler, por nos escancarar os recantos mórbidos das mentes, por sabermos que parte daquela história se passou de facto, por sentirmos que não o conseguiremos esquecer.

O focus externo desaparece e o eu assume o lugar central em Coisas que Acarinho e Me Morrem Entre os Dedos, que quase poderia ser uma continuação do conto publicado por Dulce Maria Cardoso na 1ª Granta portuguesa. Em análise está um dilema que atormenta o Homem desde tempos idos: o desejo de mudança e o medo da mudança. O mundo de possibilidades que se abre perante nós nos momentos em que estamos connosco próprios e a noção palpável de que, em última análise, tudo depende da nossa vontade. Se quisermos abandonar a nossa vida e partir para um país distante, nada nos impede, basta termos coragem de agir. Mas, assim como nos damos ao trabalho de criar mundo, também rapidamente os destruímos.

Mas se os três contos referidos já assumem uma força pouco usual para a palavra escrita, a perfeição alcança-se em Humal e Retrato de Um Jovem Poeta. Humal é magistral. Um conto mítico que nos relembra que as coisas mais belas têm por vezes por base o sofrimento, a cobardia de fazer mal a quem não se pode defender, em nome de uma beleza que se convenciona como algo de bom. E por fim, em o Retrato de Um jovem Poeta, o amor concretiza-se, assume o seu estado mais puro, o de uma entrega total, uma compreensão extra-sensorial, um sentimento que, mesmo perante o mais horrível dos cenários, permanece pleno.

Se “O Retorno” consagrou Dulce Maria Cardoso junto do grande público, “Tudo São Histórias de Amor” reafirma-a como uma escritora maior, uma contista brilhante que em poucas páginas nos faz render às histórias que nos conta, certos de que o que aquelas palavras suscitaram em nós nos acompanhará como uma memória assombrosa de um mundo que não podemos negar.

Classificação: 19/20

4 comentários:

  1. Confesso que pelo título nunca compraria o livro, não conheço Dulce Maria Cardoso e suspeitava, independentemente da qualidade da escrita que poderia ser excelente, que fosse mais uma série lamecha de loas românticas e sentimentais ao amor/paixão... pelos vistos não, é muito mais do que isso, inclusive aquilo que habitualmente não se fala como fazendo parte do amor. Assim, provavelmente reconsidero e venha a comprar e ler.

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    1. Carlos, todos os elogios que eu possa fazer à Dulce Maria Cardoso serão poucos, face ao que ela merece. Tanto este livro como "O Retorno" são obras de uma qualidade espantosa, nada que deva ser confundido com alguns dos novos autores portugueses, muito afamados, mas sem grandes méritos. Daqui a uns anos, os leitores olharão para ela com a mesma reverência com que nós olhamos agora para a Agustina, o Saramago ou o Vergílio Ferreira, estou certo disso.

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  2. Gostei de saber... e também é por causa desses afamados que eu tenho mergulhado preferencialmente pelos já consagrados farto(desculpe o termo mas é a verdade) desses brilhantes que afinal são ocos

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  3. A mim espanta-me, sobretudo, que depois de "O Chão dos Pardais", de "Campo de Sangue", de "Os Meus Sentimentos", de "O Retorno" e agora deste volume de contos - e perante a excelência de qualquer um destes títulos - ainda se continue a "descobrir" Dulce Maria Cardoso. Ou se anda mesmo distraído ou paga o justo pelo pecador.

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