segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Em discussão: Obras póstumas, uma questão moral


Os últimos anos têm sido pródigos em polémicas em torno da publicação de obras póstumas. Primeiro foi “2666” de Roberto Bolaño, que o autor, sabendo que iria morrer, determinou que deveria ser publicado em cinco partes, de forma a garantir o sustento da sua família. O seu desejo não foi atendido e o livro foi publicado num único e colossal volume. Depois foi a vez de “The Pale King” de David Foster Wallace, obra inacabada aquando do suicídio do autor e cuja publicação seria um dos acontecimentos literários de 2011. Mais recentemente, o nome de J. D. Salinger tem estado na ordem do dia por três contos seus terem sido divulgados nos últimos meses de 2013, contra a sua vontade, vindo ainda a lume informações que apontam para a publicação de vários livros do autor até 2020, não se sabendo em que estado estariam no momento da sua morte, nem se seria essa a sua vontade.

Sendo um livro uma obra que requer profunda reflexão e ponderação do escritor, a publicação de inéditos após a morte levanta desde logo um problema de controlo sobre aquilo que chegará às mãos do público. E se isso pode ser um problema em obras terminadas, é algo determinante nas inacabadas, questão problematizada num excelente artigo do Huffington Post com o auto-explicativo título “Death Becomes Them: The Imperfect Art of Posthumous Publishing”. Dito isto, há obras póstumas que adquiriram um estatuto de lenda, caso de “Margarita e o Mestre” de Mikhail Bulgákov e de “O Castelo” e “O Processo” de Kafka, que deu indicações explícitas para que os manuscritos fossem destruídos depois da sua morte. No que ficamos então? Publicar ou não publicar, eis a questão.



Obras inacabadas e recolhas de escritos privados


A morte é sempre um momento injusto e cruel, mas ainda o é mais se a pessoa em causa for um escritor. Meses investidos numa obra, que depois é deixada a meio e que quase de certeza será publicada na sua forma imperfeita, manchando anos de trabalho cuidado. É a isso que um autor se arrisca quando morre inesperadamente, sem oportunidade de organizar a sua morte. Imagino Coetzee, conhecido pelo seu perfeccionismo, à noite a dar voltas na cama e a pensar “e se eu morro e publicam todos os meus papéis, sem que eu possa rever até à exaustão cada linha, cada sinal de pontuação!” Pode parecer hiper-dramático, mas pensando bem sobre o assunto, publicar obras inacabadas de um autor é um acto no mínimo arriscado, isto para não dizer peremptoriamente que poderá ser um atentado ao seu legado.

Não concordo com a publicação de livros nestes termos. Uma obra inacabada não é uma obra, é uma potencialidade, e não me parece que seja muito relevante para os leitores ficarem a conhecê-la. Se a publicação destas obras faz um favor a alguém, será certamente aos herdeiros dos escritores e as editoras, movidos muitas vezes por interesses outros que não o de preservar a memória do autor. O mesmo se aplica, na minha opinião a escritos de cariz privado, nomeadamente a compêndios de cartas escritas a familiares. Que sejam consultadas por biógrafos, faz sentido, mas serem publicadas como um livro per si, não me parece que seja produtivo.

Tive uma experiência particularmente má com um livro inacabado: “ Súplicas Atendidas” de Truman Capote, editado em Portugal pela Dom Quixote. É verdade que durante décadas se ouviram histórias sobre este livro, de que Capote falava abertamente e em todas as oportunidades que tinha, e que por isso foi adquirindo um estatuto de mito, que se acentuou com a morte do escritor. A verdade é que Capote parece ter desenvolvido mais a história na sua cabeça do que em papel, pelo que, quando se procurou o manuscrito, o que se conseguiu encontrar foram três capítulos acabados, ainda por cima não sequenciais. Os capítulos são interessantes? São. Justifica-se a sua publicação? Não. Lendo “Súplicas Atendidas” não ficamos com a menor ideia de que tipo de livro Capote criaria caso tivesse tido a oportunidade de o acabar. Então, para quê publicar algo assim? E se a publicação nos Estados Unidos me parece uma decisão caricata, mais caricata me parece a decisão de uma editora portuguesa de traduzir um livro destes para português, como se não houvesse mais nada interessante para publicar. Talvez não tenham reparado que se contam pelos dedos os livros de Balzac que se conseguem encontrar nas livrarias.

Um caso mais complexo é o do “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa, ou melhor, de Vicente Guedes e Bernardo Soares, segundo a edição da Relógio D’Água da responsabilidade da Teresa Sobral Cunha. Os méritos literários do livro são inquestionáveis e a qualidade do trabalho de investigação de Teresa Sobral Cunha acima de qualquer suspeita. Não obstante, acho que há um esforço para apresentar tudo o que Pessoa escreveu destinado ao livro, ou que ponderou incluir, sem uma visão mais crítica de editor e sem olhar para o livro na perspectiva do leitor. Há no livro momentos de profunda genialidade, muitos, mesmo porque genialidade não era algo que faltasse a Pessoa, mas também há muita redundância, textos que talvez não precisassem de estar lá. Quem sabe que “Livro do Desassossego” Fernando Pessoa pretendia escrever?



Obras completas inéditas


No caso de obras completas, a primeira questão a fazer é: qual a vontade do autor. Se o autor expressou o desejo de que a obra fosse publicada, e se definiu de que forma o deve ser, não há questão para debate (parece-me muito estranho que o desejo do Bolaño não tenha sido respeitado).

Os problemas começam quando não há nenhuma indício daquilo que o autor queria ou se os seus desejos vão no sentido da não publicação. É neste ponto que algumas vozes se levantam e dizem “o público tem direito de conhecer a obra dos escritores que venera”. Não, não tem. Tem o direito de conhecer aquilo que o escritor quer. Mas nestes casos deve haver um elemento a considerar: o valor literário da obra. Em casos excepcionais, feita uma avaliação ponderada dos manuscritos, se se chegar à conclusão de que se está perante uma pérola da literatura, de uma obra que não pode ser ignorada, e sendo da competência dos herdeiros gerir o legado literário do escritor, não me choca que ocorra a publicação. Mas se se está perante uma obra inferior, na qual o escritor não se revia, que razão no mundo pode justificar a sua publicação?

É imperativo que quem tem o poder de decidir sobre estas matérias, decida em nome dos interesses da memória de quem produziu o trabalho e não de acordo com o que é mais conveniente para si próprio, o que em última análise pode significar a diferença entre a imortalidade de uma obra e a sua desvalorização.

4 comentários:

  1. Que excelente reflexão e argumentos muito bem esgrimidos. Parabéns João!

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  2. Obrigado! É um tema que me preocupa e que penso que muitas vezes é relegado para segundo plano.

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  3. A edição portuguesa do 2666, publicada pela Quetzal, começa com uma nota dos herdeiros (imagino que as restantes edições também). A nota explica exatamente qual o desejo do Bolaño e os motivos da decisão dos herdeiros:

    "Perante a possibilidade de uma morte próxima, Roberto deixou instruções para que o seu romance 2666 fosse publicado dividido em cinco livros que correspondem às cinco partes do romance, especificando a ordem e periodicidade das publicações (uma por ano) e até o preço negociar com o editor. Com esta decisão, comunicada dias antes da sua morte pelo próprio Roberto a Jorge Herralde, julgava deixar o futuro económico dos seus filhos solucionado.
    Depois da sua morte e após a leitura, estudo da obra e do material de trabalho deixado por Roberto, tarefa essa levada a cabo por Ignacio Echevarría (amigo que ele designara como pessoa de referência para solicitar conselho sobre as suas questões literárias), surge outra consideração de ordem menos prática: o respeito ao valor literário da obra, que faz com que, de forma conjunta com Jorge Herralde, tenhamos alterado a decisão de Roberto e que 2666 seja publicado primeiro em toda a sua extensão num só volume, tal como ele teria feito se não se tivesse cumprido o pior das possibilidades que o processo da sua doença oferecia."

    A mim, parece-me louvável a decisão dos autores. E como já o li, posso afirmar que teria perdido muito de 2666 se tivesse sido obrigada a lê-lo durante 5 anos.

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    1. Obviamente que neste caso não foi uma questão financeira que levou os herdeiros a decidir contrariar a decisão do autor, mas mesmo por isso me parece desnecessária. Se a vontade do autor era essa, devia ser respeitada.

      Quanto ao impacto sobre o valor literário da obra, apesar de não ter lido o livro, um elemento comum nas análises da obra é a referência ao quão díspares as 5 partes são, embora tenham em comum a ligação com a história de Juárez. Não acredito que o valor literário se alterasse, acho que isso só aconteceria se fosse uma história muito coesa. O que aconteceria é que os leitores encarariam o livro de outra forma: em vez de ser um romance gigantesco, era uma saga em 5 volumes.

      Mas, dito isto, o "2666" não é um exemplo grave de desrespeito pelo autor, sem dúvida.

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