O que faz de alguém um bom entrevistador? Equilíbrio,
equilíbrio, equilíbrio. O bom entrevistador conjuga de forma equilibrada
elementos que parecem antagónicos mas que, quando usados com perícia, conseguem
criar momentos inesquecíveis. O bom entrevistador está bem preparado, conhece
bem o entrevistado e o tema, sabe que perguntas quer fazer. Mas um
entrevistador controlador e rígido nunca vai além do interrogatório, não se
criando o ambiente de descontracção e empatia necessários para que o entrevistado
se sinta seduzido a partilhar. E por isso o entrevistador tem de ser também um
bom ouvinte, estar disposto a embarcar na viagem com o entrevistado, a seguir
por um caminho que surja na conversa, mesmo que o seu plano inicial não fosse
esse. Mas sem tirar os olhos do ponto ao qual quer chegar, caso contrário a
entrevista torna-se apenas numa conversa flutuante e pouco frutuosa.
Sendo empático e conciliador, é fundamental que o
entrevistador seja também ousado, que não se deixe inibir pela pessoa que tem
pela frente e perceba qual é a pergunta a que aquela pessoa não quer responder.
Porque por vezes é necessário desafiar o entrevistado para que ele
saia de trás da sua muralha e revele algo de genuíno. Mas para além de tudo isto,
o que um bom entrevistador precisa é de um bom entrevistado, porque se há coisa
dolorosa é ver alguém a fazer perguntas interessantes que a outra pessoa não
tem capacidade de responder.
Felizmente em “
Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer”, editado pela Tinta-da-China e que compila doze entrevistas publicadas na revista “Ler”, temos o melhor de dois
mundos: um excelente entrevistador, Carlos Vaz Marques, com excelentes entrevistados. Dificilmente
se conseguiria criar um grupo de escritores portugueses mais significativo do que
Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes (
já falei o suficiente sobre a sua entrevista, portanto não vou voltar a fazê-lo, mas é uma entrevista
interessante, apesar do entrevistado…), José Saramago, Eduardo Lourenço,
António Tabucchi, Mia Couto, Valter Hugo Mãe, Mário de Carvalho, Gonçalo M.
Tavares, Dulce Maria Cardoso, Manuel António Pina e Hélia Correia. Mas deste
grupo há algumas entrevistas que se destacam.
Agustina é uma pessoa muito particular. Manuel António Pina na sua entrevista, uma das melhores deste conjunto em que é levantado um
pouco o véu sobre os bastidores do mundo literário, inclui Agustina no grupo das
estátuas da literatura portuguesa e o que ele quer dizer fica bastante claro quando ouvimos o que a
escritora tem para dizer. Há em Agustina um carácter absoluto, com afirmações
fortes que têm quase uma aura de lei. E é com um tom cândido e sereno que diz
que J. K. Rowling não é a verdadeira autora de “Harry Potter”, tendo por trás
um escritor-fantasma. E diz também que Stephen King tem um negro (escritor
não identificado que escreve partes dos seus livros) e que ela consegue
facilmente identificar as partes escritas por um e pelo outro.
No pólo oposto a Agustina temos um Eduardo Lourenço humilde
que, após uma intensa insistência de Carlos Vaz Marques, acaba por confessar
que nunca pensou escrever ficção ou poesia por se sentir inibido perante o
talento dos escritores que admira. Lourenço prefere por isso falar de Pessoa,
de Sá-Carneiro ou de Llansol, da grande poesia que considera que “nos oferece um
mundo no qual a vivência deste se altera em cores e dimensões não sonhadas”.
A entrevista de Saramago surge no livro logo após a de Lobo
Antunes. Uma escolha inocente? Não sei, mas a verdade é que é extremamente útil
porque nos dá uma visão muito concreta das diferenças de postura dos dois
escritores. Em Saramago nota-se a simplicidade de quem não se perde no
auto-elogio, nem em ataques gratuitos a outros escritores. Diz-nos Saramago: “um
livro é uma barca deitada ao mar, sem tripulação nem destino. Lança-se ao mar e
depois logo se vê o que acontece. No meu caso, posso-lhe dizer que tive sorte.
Sou uma pessoa que admite a importância do factor a que chamamos sorte, Ter
aparecido no momento exacto. Talvez até com a obra exacta.”
Há duas entrevistas de que gosto particularmente. Uma delas
é de Mia Couto, que fala sobre a importância de esquecer para escrever, uma
vontade de olhar em frente e descobrir novos caminhos que é muito interessante.
Mas mais do que isso, Mia Couto apresenta-nos a perspectiva de um branco com
pais portugueses no processo de independência de Moçambique, a desconfiança com
que era tratado mesmo assumindo-se como apoiante do movimento. E há também a
descrição da sua visita à casa em que viveu em criança, o encontro com um homem
com parecenças incríveis com a personagem principal de Jesusalém e a surpresa
de muitos ao perceberem que ele não é uma mulher negra.
E depois há Valter Hugo Mãe e uma das entrevistas mais sui
generis que alguma vez leremos de autores portugueses. Há um despudor que às
vezes é quase incómodo. A forma como Valter Hugo Mãe cresceu com a consciência
da morte do seu irmão, a ideia de que morreria a primeira vez que alguém lhe
dissesse que o amava, a necessidade catártica que teve de se fotografar nu para
lidar com o desnudamento emocional na sua poesia, o descaramento com que diz
desejar fazer amor com os ossos de Camões por se sentir tão excitado com o seu
talento. Eu, que até então tinha bastantes reservas em ler os seus livros, fiquei
com muita vontade de fazê-lo.
Carlos Vaz Marques proporciona-nos nestas doze entrevistas
uma viagem pelas paisagens íntimas de figuras incontornáveis da literatura
portuguesa, dando ao nome nas capas dos livros uma voz, uma fisionomia
psicológica que nos revela pistas sobre aquilo que lemos. Um livro para ler, reler
e reflectir.
Classificação: 19/20