A vida tem uma forma incontrolável de nos afastar do nosso
potencial. Uma força violenta e indestrutível que nos arrasta para caminhos que
não são aqueles que queremos percorrer, sem que nada possamos fazer para o evitar. Alice
Munro percebe isso melhor que ninguém, a crueldade de vermos desde cedo os
nossos planos comprometidos, porque por muito que corramos, nada mais
encontraremos do que aquilo que nos está reservado. E essa é uma moral que
percorre os oito contos que compõem “Fugas”, editado em Portugal pela
Relógio D'Água.
Munro ilustra o despedaçar das expectativas pela justaposição
de extremos: em muitos contos, a um início promissor, na juventude, em que se revelam
possibilidades, segue-se de imediato a velhice, e a percepção de que as
possibilidades são geralmente pontos de interrogação para os quais não há
resposta prevista. É o que acontece em “Truques”, por exemplo, em que a jovem
Robin crê que a solução para uma vida que se adivinha ser dedicada a cuidar da
irmã doente está num homem que conhece numa ida ao teatro. Por muito que a
vontade de Robin de mudar o curso do seu destino seja grande, não o é o suficiente para ultrapassar o choque de um encontro inesperado. E passados
anos Robin encontrar-se-á onde não queria estar, duramente consciente da vida
que ficou por viver.
Também em “Forças Ocultas” há essa passagem abrupta do tempo.
Numa página temos a impetuosa Nancy, cheia de planos e de desejo de partilhar a
vida com o homem que ama. Na página seguinte a Nancy que se nos apresenta é uma
derrotada, conformada com uma proximidade com o marido que nunca será alcançada e
confrontada com o efeito ainda mais nocivo do tempo sobre aqueles com quem partilhou um período tão excitante da sua vida.
Mas nenhum exemplo será melhor do que o da trilogia “Acaso”/”Em
Breve”/”Silêncio”. Começamos a ler “Acaso” sem a noção de que voltaremos a
encontrar Juliet nos contos seguintes e, por isso, habituamo-nos à ideia de
perdê-la dali a poucas páginas, enquanto acompanhamos as suas viagens rumo ao
desconhecido, numa procura ansiosa pela mudança. Quando “Em Breve” começa,
reencontramos Juliet passados poucos anos e percebemos que tudo se conjugou para
que aquilo que desejava se concretizasse. Mas em “Silêncio”, 20 anos depois, o caminho bem sucedido revela as suas agruras e Juliet
é atacada por onde menos espera. Aquilo que aconteceu nesses 20 anos é-nos
eventualmente contado, mas o choque entre “o que deveria ser” e “o que é” é
vincado pelo impacto inicial.
Esta trilogia é de resto um dos exemplos mais notáveis dos talentos
de Munro. A forma como discretamente as três histórias se interligam, como um
simples acontecimento num dos contos nos dá uma chave para algo que acontecerá
no futuro, fez-me lembrar a Trilogia das Cores do cineasta
Krzysztof Kieslowski.
Não é por acaso que Christa é mencionada em “Acaso”, tal como a discussão com o
pastor Don em “Em Breve” também não é inocente. Mas talvez o facto mais interessante
destes três contos seja aquilo a que não assistimos em “Em Breve”, por estarmos focados
em Juliet e não podermos olhar para o que passa noutras paragens, e que só
ficaremos a saber em "Silêncio". Uma teia primorosamente tecida.
Todos os contos de “Fugas” são excelentes. Talvez o menos
bem conseguido seja “Forças Ocultas”, pela mistura de formatos no início (diário,
depois narração, depois carta, depois narração) e porque há algo na história
que simplesmente não funciona muito bem. Mas perante a qualidade do que lemos
até ali, é com prazer que acompanhamos estas 50 páginas finais, mesmo que não
sejam tão boas quanto o resto.
Por muito que tenha gostado dos contos de Juliet, a história
que mais me marcou foi a de “Fugida”, pela riqueza de imagens que Munro usa e a
forma decidida como constrói uma relação perversa entre Clara, Clark e Sylvia,
envolvendo o leitor deste o início num ambiente de ansiedade, com um sentido de
perigo iminente. A forma como a cabrinha Flora é utilizada na
história e a incerteza dos últimos parágrafos do conto são um exemplo do que
uma escritora genial consegue fazer com tão pouco.
“Fugas” é um livro surpreendentemente bom, uma ode às
potencialidades do conto, tantas vezes visto com um género menor. Mas mais que
isso, “Fugas” é o testemunho do talento de uma escritora que permanecerá por
muitas gerações como uma referência. E quem pensa que as histórias de Munro são
delicodoces e inocentes está redondamente enganado. Munro habita o mais
complexo e perigoso dos mundos, o da vontade humana, uma vontade que muitas
vezes é apenas isso, uma vontade.
Classificação: 18/20