Duras. Um
mito construído sobre os escombros de uma infância infeliz na Indochina. Uma
das figuras de proa de cultura francesa e europeia do século XX. Uma mulher
feroz, corajosa, habituada a chocar, a lutar por si e por aquilo em que
acredita. Um desejo sexual lancinante, que celebra a sua condição de mulher,
que a conduz de homem em homem à procura de uma plenitude amorosa que talvez
nunca tenha encontrado. À procura do seu irmão Paul, do seu adorado irmão Paul,
que tão cedo a deixou e que será sempre o homem da sua vida. Mas acima de tudo,
a vida de Marguerite Duras será sempre uma libertação da sua mãe, do amor
absoluto que tem por ela e do ódio dilacerante que sente por nunca ter sido
correspondida. A mãe. Sempre a mãe em Duras.
Tudo o
que Duras foi, tudo o que escreveu, tudo o que sentiu, tudo tem origem na Indochina, a terra em que nasceu há 100 anos e onde viveu até quase à idade adulta, num
estatuto ambíguo de membro da raça privilegiada mas pobre.
Nessa altura Marguerite Duras era ainda Marguerite Donnadieu, a filha mais nova
de um casal de viúvos que voltara a casar. Os primeiros anos de Marguerite são
marcados por acontecimentos que afectarão a sua vida de forma profunda: a morte do pai e
a dinâmica com a mãe e com os seus dois irmãos, particularmente com o mais
velho, o irmão que apelidaria de assassino e criminoso, e que a
aterrorizaria, a ela e a Paul, durante toda a infância. O amor incondicional da
mãe pelo filho mais velho, o seu filho, aquele que sente despudoradamente como
mais seu, cria feridas em Duras que nunca cicatrizariam.
É também
em muito nova que, de acordo com o testemunho de alguns amigos próximos a quem
terá revelado o caso, teve a sua primeira experiência sexual, aos cinco anos,
com um rapaz vietnamita de cerca de dez anos. E esse acontecimento é de grande importância. A experiência não é consensual, não que tenha sido também
forçada, é sobretudo uma experiência inconsciente da parte dela que em tão tenra
idade não consegue compreender o que se passava. Mas há uma
noção de proibido que fica sempre consigo. Se uma experiência sexual naquela
idade é por si só um facto relevante e gerador de traumas, o facto de ter sido
com um vietnamita, algo mal-visto pela sociedade colonialista, foi agravando esse
peso.
A
sexualidade de Marguerite tornar-se-á consciente depois do período que
mitologicamente ficaria conhecido como “as barragens”, referindo-se à trágica
compra de uma concessão pela sua mãe de uma terra que se revelaria incultivável,
invadida durante grande parte do ano pela água do mar. A devastação dessa
experiência ficaria para sempre eternizada em “Uma Barragem Contra o Pacífico”,
retomada depois, de forma mais pessoal ainda, em “O Amante”. A situação
económica da família atinge um ponto de ruptura nesta fase, gastas que foram as
suas economias na concessão e na tentativa desesperada de edificar barragens
que impedissem o avanço das águas. Condenados a um estado de quase profunda
miséria, Marguerite percebe que o interesse que suscita nos homens pode ser uma
arma a favor de toda a sua família, empenhando-se na procura de um homem rico
que, em troca de jogos de sedução, lhe dê dinheiro. Assim começa Marguerite a
traçar o caminho que a levará ao romance com o amante chinês milionário, que
tão fortemente a marcará. E nesse caminho Marguerite Donnadieu converte-se em
Duras, na essência de Duras, que se viria a materializar na adopção do nome
aquando do início da sua carreira literária. Duras, o nome da terra de seu pai,
o pai que quase não conheceu, o primeiro homem inalcançável da vida de Duras.
Por fim,
quando o hipotético casamento com o amante chinês se torna definitivamente numa
impossibilidade, Marguerite parte para França. Voltará pouco tempo depois à
Indochina, para terminar os estudos, e depois volta a partir para
nunca mais voltar, libertando-se finalmente da loucura da sua mãe, do seu
desespero torrencial, da distância intransponível que as separe. Duras parte
para viver. Uma vida que testemunha os grandes acontecimentos do século, com um
papel bastante activo na Resistência Francesa durante a ocupação nazi, que
valeria ao seu marido Robert Antelme a deportação para o campo de concentração
de Dachau, onde seria encontrado, já após a libertação, por François Miterrand,
uma figura muito próxima de Duras e de Antelme na altura e que era o líder do
grupo de resistentes a que pertenciam.
A vida de
Duras será sempre marcada por relações amorosas tumultuosas. O seu casamento
com Antelme era sobretudo um pacto de amigos antes da Guerra, uma comunhão de espíritos acima de tudo. Antelme terá a sua
amante e Duras terá também o seu, Dionys Mascolo, que desenvolverá com o casal
uma relação de grande intimidade, sendo o melhor amigo de Antelme, o amigo que o irá
buscar a Dachau e que lhe salvará a vida. Mas acima de tudo, Dionys Mascolo
será o pai do filho de Duras.
Já na
velhice Duras chocará o mundo com o seu romance com Yann Andréa, quase 40 anos
mais jovem que ela, e que será o seu companheiro nos seus últimos anos de vida.
A escrita de Duras
As obras
de Duras são dotadas de um sentido poético pungente, com ambientes criados de
forma cinematográfica que evocam sentimentos. Mais do que uma sucessão de
acontecimentos, os livros de Duras centram-se em estados de
espírito, viagens emocionais que exigem um compromisso por parte do leitor,
uma entrega compatível com o desnudar emocional da autora.
A
separação entre ficção e realidade é um exercício muito difícil em Duras, que
alimenta a escrita da sua vida, das suas percepções, das suas próprias
emoções. Não há distanciamento na obra de Duras, que com os anos vai criando
uma mitologia em seu torno, alimentada pela realidade ficcionada dos seus
livros.
Há sempre
figuras femininas marcantes nos livros de Duras. São por norma mulheres que
desafiam as convenções, de uma grande força face à adversidade mas de uma
enorme fraqueza face à tentação, e por tentação entenda-se desejo sexual. O
amor é em Duras uma força destrutiva, uma procura errante por um ideal
representada em “O Marinheiro de Gibraltar” ou um sentimento proibido entre
pessoas de mundos incompatíveis, como em “Hiroshima Meu Amor”.
Há
outros temas recorrentes na sua obra: a mãe dominadora e louca, os irmãos e os
sentimentos incestuosos, os judeus e a guerra. Se Duras tem algo por explorar
emocionalmente depois da Indochina, a ocupação alemã dar-lhe-á as vivências que
lhe faltam. A prisão de Antelme, o tempo sem notícias dele, o envolvimento
com um suposto colaborador da Gestapo para obter informações, o profundo desejo
de vingança após a libertação e o choque do reencontro com Antelme, com a
experiência de Antelme em Dachau, serão matéria-prima inesgotável para a sua
escrita, que com o tempo se adensa.
Duras
escreve como quem revela um pecado, num tom confessional guiado por uma
corrente de consciência que subverte a noção de tempo e de espaço. O exemplo
máximo desse estilo será “O Amante”, que lhe valerá em 1984 o Prémio Goncourt, já bastante afastado do estilo fortemente
marcado pela influência americana, particularmente de Faulkner, nas suas
primeiras obras.
Marguerite Duras na minha vida
A escrita
de Duras pertence-me. Sinto-a como minha. É um sentimento mais profundo do que
admirar o talento de alguém, é sentir, ao lê-la, que as suas palavras evocam a
minha voz, que são uma manifestação do meu ideal de escrita. Há outros
escritores que me dizem muito, mas nenhum que me centre tão em mim próprio como
Duras.
Duras foi
sempre um nome familiar. Não sei quando o ouvi pela primeira vez, mas parece-me
que desde sempre este nome me soou a algo familiar. Mas o meu primeiro contacto
consciente com a sua obra deu-se algures no final dos anos 90, quando vi “O
Amante” pela primeira vez, era então ainda um adolescente. O filme, venerado na
Europa e considerado um filme erótico ao nível dos da Playboy nos EUA, tocou-me
de forma inesperada. Recordo-me das últimas cenas do filme como se as tivesse
visto agora mesmo. A rapariga no barco, como na primeira vez que encontra o
amante, a afastar-se lentamente da Indochina, partindo para França. No cais, ao
longe, vê-se o carro do amante. Nunca se vê o amante. Apenas o carro. Aquela
evocação estática da sua presença é de uma beleza dilacerante. O sentimento de
perda domina tudo à medida que aquele último avistamento torna claro que aquela
relação não foi um mero jogo sexual, que houve sentimentos profundos que os
uniram.
Passariam
alguns anos até que eu lesse o livro, o que aconteceria em 2008, nessa altura a
versão da Biblioteca Sábado. Li a primeira página e foi como se naquele momento algo em mim que mudasse. Quem lê “O Amante” nunca esquece as primeiras
frases, um começo que nos diz tudo, que alberga em si a essência de Duras.
Comecei a comprar avidamente livros de Marguerite Duras, mas só há dois anos a voltei
a ler, embora tenha relido “O Amante” várias vezes. Li então “O Marinheiro de
Gibraltar” que foi até agora o que menos me marcou. Há muitos pontos de
interesse no livro, as personagens e a história são interessantíssimas, mas há
algo que falha, na fase final, que deixa uma impressão de obra
inacabada ou terminada à pressa.
Li
recentemente mais dois livros de Duras, “Uma Barragem Contra o Pacífico” e
“Hiroshima Meu Amor”, que reafirmaram a sua importância na minha vida. Não sinto pressa de
ler tudo dela, quero saborear os livros que me faltam à medida que o tempo passar, redescobrindo-a
em diferentes fases da minha vida. O que me leva á questão final: os livros de
Marguerite Duras em Portugal.
Portugal esqueceu Duras?
As
editoras portuguesas esqueceram-na, sem dúvida. Desde que a Difel, que tinha a
quase totalidade da sua obra publicada, se eclipsou, é difícil encontrar os livros de Duras. Durante alguns anos nem “O Amante” se conseguia
comprar, tendo vindo em boa hora a edição da ASA Vintage. Há também vários livros de Marguerite
Duras editados pela Livros do Brasil, mas cada vez se encontram menos nas livrarias.
O que resta então? Pouca coisa e tudo disperso
por várias editoras:
Obras emblemáticas como “Uma Barragem Contra o
Pacífico”, “Hiroshima Meu Amor”, “Ausância de Lol V. Stein” ou “Moderato
Cantabile” desapareceram quase por completo. A Quetzal que em tempos editou
“Hiroshima Meu Amor”, “India Song”, “Textos Secretos” e a biografia da
escritora da autoria da Laure Adler, deixou-os esgotar sem os reeditar. Só
“Textos Secretos” me escapou, os outros três estão na minha
biblioteca, junto aos outros 19 livros que tenho de Duras, graças a muita
persistência e dedicação.
É de resto uma pena que a Quetzal não aposte em
Duras, porque me parece ser uma autora que se enquadra perfeitamente no
catálogo da editora. Para já, restam-nos os
alfarrabistas e alguns livros esquecidos nas livrarias. É pouco. Duras merecia
mais.