“O facto de ele não me dizer sempre a verdade faz-me duvidar
da verdade do que ele em certas alturas me diz, e então tento descobrir pelos
meus próprios meios se é verdade ou não o que ele me está a dizer, e algumas
vezes sei que não é verdade, outras vezes não sei e nunca saberei, e outras
ainda, só porque ele não pára de mo dizer, convenço-me de que é verdade, porque
não acredito que ele seja capaz de repetir tão constantemente uma mentira.”
in História
As dificuldades de que se reveste a escrita de um conto são
muitas vezes ignoradas pelos leitores que se centram apenas na comparação com o
tamanho de um romance. Mas escrever uma história em poucas páginas requer uma disciplina,
uma gestão absoluta do ritmo da narrativa e uma criatividade que permita impregnar
aquelas poucas páginas de sentido, para que, apesar do pouco tempo que convivem
com o leitor, sejam capazes de o marcar de forma indelével. Ora tudo isto é
ainda mais verdadeiro quando o escritor se dedica sobretudo a microcontos e raramente se
aventura para lá das cinco páginas, residindo neste facto um dos maiores méritos de
Lydia Davis.
Na contracapa dos “Contos Completos” da autora, editado em
Portugal pela
Relógio D’Água, e no qual se insere o livro “Acerto de Contas”,
afirma-se que a obra de Lydia Davis é um dos expoentes máximos da literatura
americana. Não sei se essa afirmação não se revestirá de algum exagero. “Acerto
de Contas” não é seguramente a última coca-cola no deserto. Diria sem reservas
que Lydia Davis é uma escritora com um estilo muito próprio e acredito que seja
talvez a escritora do mundo que melhor domine o género pequenos contos mas, dizendo
isto, há também que dizer que muitas vezes Davis tropeça numa das
armadilhas próprias deste género e que é a banalidade. Especialmente nos
microcontos, é muito difícil conseguir um resultado memorável. Muitas vezes
são só umas quantas linhas interessantes sobre algo muito específico que não nos fazem sentir remorsos ao virar a página. Mas quando tudo corre bem, há momentos
gloriosos e “Acerto de Contas” tem os seus.
Mildred e o Oboé é um exemplo da riqueza de conteúdo que se
pode conseguir com uma escrita económica. Um magnífico testemunho das
inseguranças e desejos latentes de uma mulher que, condenada a uma vida imaculada,
não consegue deixar de interpretar os barulhos que ouve no prédio como
manifestações da sexualidade das treze mulheres que habitam o edifício. Pensa
então que a sua vizinha Mildred se está a masturbar com um oboé, ou que talvez
esteja a ser possuída por um tocador de oboé, ou que talvez esteja a bater no
cão. A ideia de mulheres sexualmente realizadas aterroriza-a, o que a faz
vê-las como predadoras que na primeira oportunidade atacarão o seu indefeso
filho. E acho que, ao interpretar o conto já usei quase tantas palavras como o
conto em si, o que é por si só uma prova da sua excelência.
Em registos já com algumas páginas (no máximo cerca de 10),
há vários momentos muito felizes. Logo a abrir o livro, História é um relato
ansioso, de frases curtas e incisivas, lidas ao ritmo de uma respiração
ofegante, exprimindo as desconfianças que uma mulher tem em relação à
fidelidade do homem com quem está envolvida. Revela uma espécie de lucidez alucinada,
atitudes loucas baseadas numa visão de racionalização total. Sentimos em cada
linha uma ânsia, uma angústia crescente. Um nervosismo que nos impulsiona a
seguir e frente e a desejar desesperadamente descobrir o que se passa.
Em Notas para Uma Biografia de Wassilly o sentimento é o
oposto: o de uma total inacção. Wassilly está tão submerso em si próprio, nas
convenções que criou e nas potencialidades que crê estarem associadas à sua vida, que se condena a um estado
vegetativo, a uma falsa sensação de ocupação, de falta de disponibilidade,
quando na verdade deixa que os dias se esgotem em tarefas ridículas.
Mas para mim as duas jóias
da coroa de “Acerto de Contas” são O Projecto da Casa e A Criada de Servir. O
primeiro revela-nos um desejo inquieto de evasão, de lutar por um idílio pessoal que sempre parecera impossível, que leva a personagem central do conto
a abandonar a vida que conquistou na cidade e a investir na compra de uma casa
em ruínas no campo, que planeia recuperar. O encontro que ocorre com um caçador, que entra abruptamente na sua casa e o passa a visitar com regularidade, é uma
confrontação com o lado selvagem do espírito criativo, uma espécie de instinto
de realização, que perante o medo e a incerteza enfraquece e quase desaparece.
A Criada de Servir é de uma crueldade imensa. Uma mulher sem
nenhum atractivo, condena-se a viver do reconforto de pequenos gestos que pensa
perceber, gestos de um homem também ele sem atractivos. Tenta agradar-lhe como
sabe, desempenhando empenhadamente o seu mister de criada, sem se aperceber que
nunca conseguirá ser mais do que uma mobília para ele e que acabará os seus
fétidos dias na companhia da mãe que odeia mas que é a única pessoa que age
como se a amasse. Um retrato de um mal-estar e de uma frustração quase
insuportáveis.
“Acerto de Contas” é um bom livro, cuja unidade reside numa
tentativa de perseguir um lado quase psicótico das personagens, que estão quase
sempre alteradas ou à beira de uma queda no precipício. Com pontos
altos bastante notórios, embora com alguns contos olvidáveis e irrelevantes
pelo meio, “Acerto de Contos” é uma leitura refrescante de uma escritora
comprometida com o mundano, que por vezes consegue transformar em transcendente.
Classificação: 15/20
(Este é o primeiro de uma série de quatro artigos sobre “Contos
Completos” de Lydia Davis, pulicado em Portugal pela Relógio D’Água. Cada artigo
incidirá sobre um dos livros individuais contidos nesta colectânea, sendo o
próximo artigo desta série sobre “Quase Sem Memória”.)