quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Contando contos de Edgar Allan Poe: “Revelação Mesmérica”

Poe parece empenhado em converter todos os seus escritos em pequenas dissertações que servem para pouco mais do que expor as suas capacidades retóricas. Desta vez é o hipnotismo o tema em análise, procurando convencer-nos inicialmente da sua capacidade para conduzir o indivíduo a um estado elevado de consciência, no qual se acede a uma espécie de verdade suprema.

Estando o Sr. Vankirk moribundo, o narrador da história é chamado a submete-lo a uma sessão de hipnotismo, prática que parece aliviá-lo. Aproveitando a visão clarificadora que essa condição supostamente proporciona, o Sr. Vankirk discorre sobre a existência de Deus com uma certeza directamente proporcional ao ridículo da sua tese de que Deus é aquilo a que chama matéria impartível, uma matéria una que tudo atravessa.

No final, e apenas para dar um ar da sua graça, Poe ainda nos atiça a curiosidade quanto à capacidade de a alma, quando submetida ao hipnotismo, sobreviver ao corpo. Enfim, não sei o que me espera dos seguintes contos incluídos em "Todos os Contos" de Edgar Allan Poe, mas espero que a qualidade melhore, caso contrário só mesmo sob hipnotismo é que conseguirei levar a sua leitura a bom porto.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Em estado crítico: “Herzog” de Saul Bellow


Não se parte para a leitura de um livro de Saul Bellow com baixas expectativas. Considerado um dos maiores escritores americanos do século XX, conquistou o Nobel da Literatura em 1976, no mesmo ano em que recebeu o Pulitzer por “O Legado de Humboldt”. Mas foi “Herzog” que se tornou sinónimo de Bellow, o que aumenta o simbolismo da sua leitura. A grande obra de um dos maiores escritores, como não ficar ansioso? E talvez o problema seja esse, o esperarmos muito de “Herzog” e depois sentirmos que aquilo que nos dá empalidece perto daquilo que queríamos.

Não sendo um romance epistolar per si, mas sendo a narrativa permeada por missivas que Herzog mentalmente escreve a várias pessoas, fiquei logo no início com algumas reservas. A ideia de um romance recheado de cartas não me parece sedutora, mas resta sempre a esperança de que os preconceitos se revelem infundados e novas possibilidades se apresentem perante os nossos olhos. Não foi esse o caso: as cartas são parte significativa dos meus problemas com “Herzog”.

Moisés Herzog é um homem de meia-idade com o mundo em estilhaços. O recente fim do seu segundo casamento deixou marcas profundas, daquelas que só uma dupla traição consegue criar. Depois de ser convencido pela sua mulher, Madalena, a mudar-se para Chicago e de ajudar um amigo de ambos, Valentim, a encontrar trabalho nessa mesma cidade, Herzog é apanhado desprevenido pela revelação do caso que os dois mantém. Herzog percepciona Valentim como seu inferior em termos intelectuais e, em embora seja charmoso, tem uma deficiência física, o que juntamente com o facto de ser um amigo próximo contribui para exacerbar a humilhação sentida por Herzog. Neste contexto, as cartas mentais funcionam como catarse, uma espécie de autoterapia que ajuda Herzog a ir-se livrando das suas frustrações, apaziguado por um falso sentimento de acção. Mas as cartas tendem a ser divagações filosóficas, considerações desgarradas que interrompem o ritmo da narrativa e subtraem mais do que acrescentam.

E é uma pena que assim seja e que Bellow tenha dificuldades em criar conexões relevantes entre os diferentes momentos da história. É como se estivéssemos perante uma obra de arquitectura com divisões primorosamente construídas, ligadas por corredores em ruínas. De facto o talento de Bellow é inegável nos vários diálogos que vão surgindo ao longo do livro. Equilibrados, com uma carga de oralidade que lhes confere uma autenticidade inatacável e reveladores da complexidade de personagens que recusam a armadilha da bidimensionalidade. A visita ao advogado Sandor e à mulher do seu falecido pai são, por diferentes motivos, excelentes exemplos da perícia de Bellow, mas que funcionam como um contraponto às cartas desinteressantes e às descrições pouco inspiradas.

O frágil jogo de equilíbrio que Herzog se esforça por manter vai-se tornando insustentável e encaminha-se para um trágico desfecho, impedido apenas por um providencial momento de clarividência. Perante um choque emocional Herzog consegue questionar o caminho que decidiu percorrer e depressa se apercebe da dimensão do erro que se preparava para cometer. Num final magistral, que quase compensa as falhas do livro, Herzog volta à sua casa isolada no meio da floresta e reaprende a viver. Há melancolia, há mágoas, há dúvidas, mas há também um vislumbre de esperança. 

“Herzog” não é o livro que prometia ser, mas é uma boa leitura.

Classificação: 16/20

A versão que li é a da Biblioteca Sábado, mas a Quetzal publicou recentemente uma nova edição deste livro.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A dependência dos livros – edição Julho de 2015


Momento charada: qual é coisa qual é ela que está a mais nesta foto? Quem apostou nas “Collected Stories” do Mark Twain apostou bem e não, não é por ser a única obra em língua estrangeira. Acontece que este conjunto de livros foi adquirido no início do ano, numa promoção pornográfica, e esquecido numa prateleira, sem me lembrar de o incluir nas compras do mês. Pois bem, reponhamos a verdade e caminhemos em frente.

Tenho de destacar em Julho a compra do último volume das "Obras Completas" do Borges, editadas pela Teorema, livro que como sabem me fez suar quando, após 4 anos de pacientes compras volume a volume na Feira do Livro, me preparava para terminar a minha saga e fui esmagado pela palavra ESGOTADO. Enfim, consideremo-nos abençoados por termos uma Bulhosa nas nossas vidas para nos ajudar em situações de emergência.

Abençoados também os passatempos na página de Facebook da Porto Editora que me valeram o “Levantado do Chão” de Saramago, ganho no dia seguinte ao meu aniversário (que coincide com o dia em que Saramago morreu), mas que ainda demorou uns dias a chegar até mim.

De resto, como resistir a uma boa promoção da Wook? Impossível, portanto mais vale fazerem como eu: resignarem-se e arranjarem um espacinho para mais livros na vossa estante. “A Liberdade de Pátio” de Mário de Carvalho e “Diário da Queda” de Michel Laub já conquistaram o seu lugar na minha biblioteca.

E só para pecar em pleno, numa marota visita à Bulhosa enquanto esperava que o volume final do Borges chegasse, eis que “Oscar e Lucinda” de Peter Carey me piscou o olho e quando dei por mim já estava com ele no colo a caminho de casa. Ah, tentações!

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O que é que a Granta tem? “A Revolução Instantânea” de James Fenton


Gostando eu de política e de reportagens, seria de esperar que uma reportagem sobre um acontecimento marcante da política internacional fosse algo que me suscitasse imenso interesse. Mas não é esse o caso, e já o relato de Kapuścińsk na 1ª Granta havia sido um desafio à minha vontade. Muitas vezes sinto neste tipo de textos que o jornalista sente que está a falar com especialistas e parte portanto do princípio que acontecimentos e personagens nos são familiares, dispensando contextualização. E depois, o pobre o leitor quando dá por si está no meio de um realidade que lhe é completamente alheia, sentindo-se o mais ignorante dos seres.

Mas apesar das minhas reticências iniciais, Fenton tem a seu favor poder contar com o fascínio que o casal Marcos (o ditador Filipino e a sua espampanante mulher Imelda) exercem,  o que sempre torna a leitura mais cativante. Focando-se na queda do regime de Ferdinand Marcos, o relato de Fenton evidencia o efeito que uma sequência vertiginosa de acontecimentos pode ter sobre a realidade, como se presente, passado e futuro se confundissem por instantes e o mundo tal como o concebemos ruísse perante os nossos olhos, pertencendo tudo ao passado embora ainda exista no presente.

E é assim que num momento o casal Marcos está a receber jornalistas na sua luxuosa residência, e no momento seguinte estranhos caminham pelos seus aposentos como se lhe pertencessem. Aquela já não era a casa de Imelda e Ferdinand, mas era como se os seus passos ainda se ouvissem ao fundo do corredor.

Fenton deixa-nos no final algumas provocações. Perante a rapidez com que tudo ocorreu, a revolução terá sido orquestrada? Mas mais do que isso: a revolução foi feita em nome o quê? Será que o que se segue é melhor do que aquilo de que se viram livres? As revoluções têm muitas vezes esse defeito, o de serem um fim em si mesmo, e de repente acorda-se no dia seguinte e pergunta-se “e agora?”.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Em estado crítico: “Malone Está a Morrer” de Samuel Beckett


Mais por teimosia do que por estoicismo, avancei para a leitura do segundo livro da famosa trilogia de Beckett ainda com as agruras de “Molloy” vivas na cabeça. Não tinha grande esperança que a experiência com este livro fosse ser muito diferente, mas nas primeiras páginas ainda houve uma fagulha ínfima, rapidamente dragada pela escuridão.

Na verdade o que vos disse no passado sobre “Molloy” poderia ser exactamente o que vos digo agora sobre “Malone Está a Morrer”. Temos no centro da história um homem moribundo que, de forma entrecortada, nos vai contando a história de Sapo, que mais à frente passa a ser chamado de Macmann. À semelhança do que acontece no livro anterior, com o evoluir do livro e a progressiva fraqueza de Malone, o discurso vai-se tornando mais errático, os parágrafos tornam-se maiores, as ideias menos claras, e deixamos de perceber se a história que nos é contada é mesmo a de Macmann, ou se não se tratará da vida do próprio Malone.

Como disse a respeito de “Molloy”, reconheço o valor literário do que Beckett fez, embora para mim seja mais eficaz como um monólogo teatral do que como um romance. Beckett mimetiza de forma impressionante a mente confusa de um homem quase dominado pela morte, mas isso é mais uma qualidade técnica do que um argumento para considerar “Malone Está a Morrer” aquilo que não é: um grande romance. Ou talvez o seja para alguns, mas eu não revejo nos dois livros de Beckett o meu conceito de literatura, da literatura capaz de criar empatia, que me move do meu eixo e me faz sentir. Para mim “Malone Está a Morrer” é quanto muito um exercício intelectual bem-sucedido e não anseio pelo dia em que lerei “O Inominável”…

Classificação: 10/20