quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Em estado crítico: “Herzog” de Saul Bellow


Não se parte para a leitura de um livro de Saul Bellow com baixas expectativas. Considerado um dos maiores escritores americanos do século XX, conquistou o Nobel da Literatura em 1976, no mesmo ano em que recebeu o Pulitzer por “O Legado de Humboldt”. Mas foi “Herzog” que se tornou sinónimo de Bellow, o que aumenta o simbolismo da sua leitura. A grande obra de um dos maiores escritores, como não ficar ansioso? E talvez o problema seja esse, o esperarmos muito de “Herzog” e depois sentirmos que aquilo que nos dá empalidece perto daquilo que queríamos.

Não sendo um romance epistolar per si, mas sendo a narrativa permeada por missivas que Herzog mentalmente escreve a várias pessoas, fiquei logo no início com algumas reservas. A ideia de um romance recheado de cartas não me parece sedutora, mas resta sempre a esperança de que os preconceitos se revelem infundados e novas possibilidades se apresentem perante os nossos olhos. Não foi esse o caso: as cartas são parte significativa dos meus problemas com “Herzog”.

Moisés Herzog é um homem de meia-idade com o mundo em estilhaços. O recente fim do seu segundo casamento deixou marcas profundas, daquelas que só uma dupla traição consegue criar. Depois de ser convencido pela sua mulher, Madalena, a mudar-se para Chicago e de ajudar um amigo de ambos, Valentim, a encontrar trabalho nessa mesma cidade, Herzog é apanhado desprevenido pela revelação do caso que os dois mantém. Herzog percepciona Valentim como seu inferior em termos intelectuais e, em embora seja charmoso, tem uma deficiência física, o que juntamente com o facto de ser um amigo próximo contribui para exacerbar a humilhação sentida por Herzog. Neste contexto, as cartas mentais funcionam como catarse, uma espécie de autoterapia que ajuda Herzog a ir-se livrando das suas frustrações, apaziguado por um falso sentimento de acção. Mas as cartas tendem a ser divagações filosóficas, considerações desgarradas que interrompem o ritmo da narrativa e subtraem mais do que acrescentam.

E é uma pena que assim seja e que Bellow tenha dificuldades em criar conexões relevantes entre os diferentes momentos da história. É como se estivéssemos perante uma obra de arquitectura com divisões primorosamente construídas, ligadas por corredores em ruínas. De facto o talento de Bellow é inegável nos vários diálogos que vão surgindo ao longo do livro. Equilibrados, com uma carga de oralidade que lhes confere uma autenticidade inatacável e reveladores da complexidade de personagens que recusam a armadilha da bidimensionalidade. A visita ao advogado Sandor e à mulher do seu falecido pai são, por diferentes motivos, excelentes exemplos da perícia de Bellow, mas que funcionam como um contraponto às cartas desinteressantes e às descrições pouco inspiradas.

O frágil jogo de equilíbrio que Herzog se esforça por manter vai-se tornando insustentável e encaminha-se para um trágico desfecho, impedido apenas por um providencial momento de clarividência. Perante um choque emocional Herzog consegue questionar o caminho que decidiu percorrer e depressa se apercebe da dimensão do erro que se preparava para cometer. Num final magistral, que quase compensa as falhas do livro, Herzog volta à sua casa isolada no meio da floresta e reaprende a viver. Há melancolia, há mágoas, há dúvidas, mas há também um vislumbre de esperança. 

“Herzog” não é o livro que prometia ser, mas é uma boa leitura.

Classificação: 16/20

A versão que li é a da Biblioteca Sábado, mas a Quetzal publicou recentemente uma nova edição deste livro.

2 comentários:

  1. Eis uma descrição com a qual estou plenamente de acordo, entrei com perspetivas muito altas e depois foram esmorecendo à medida que a leitura avançava. Não sei se a projeção que os judeus fazem aos seus artistas não valorizou excessivamente obras como estas. A verdade é que esperava mais quando comecei a ler Herzog... não é um mau romance, mas não atingiu o nível que esperava.
    Não li o outro romance e precisamente devido à desilusão que este me causou.

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    1. Não concordo com a questão da projecção dos judeus. O prestígio de Bellow supera em muito esse âmbito e a prova disso é o Nobel.

      Eu tinha decidido fazer um especial sobre o centenário de Bellow, que se comemorou este ano, mas perante a leitura de "Herzog" desisti da ideia. Entretanto li também "Jerusalém, Ida e Volta", mas sobre esse livro falarei nas próximas semanas.

      Eu conto voltar a Bellow, mas voltarei sem grandes expectativas.

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